Victória Perino Rosa*
Na última sexta-feira (06/08), noticiários do mundo inteiro voltaram seus olhares para o Afeganistão para anunciar o assassinato do porta-voz do governo afegão pelas forças Talibãs. Este episódio veio na esteira da reacensão do grupo armado, em eventos crescentemente marcados por atentados e ações de guerrilhas contra as forças do governo em Kabul, até a tomada de controle de cidades afegãs. Nos episódios, é comum observar as forças talibãs utilizando equipamentos deixados para trás por forças internacionais no processo de retirada da ocupação do Afeganistão e, nesse sentido, os recentes eventos têm sido avaliados com preocupação em veículos de comunicação e análises internacionais.
Em 14 de abril, o recém-empossado presidente Joe Biden anunciou a retirada de tropas norte-americanas do país, em um processo que foi iniciado por seu antecessor, Donald Trump, e deve ser concluído até 11 de setembro deste ano, data simbólica que remonta aos atentados às torres gêmeas, em Nova York, 20 anos atrás. Em 01 de maio, Estados Unidos e OTAN deram início formalmente à retirada das tropas e, desde então, a mídia internacional tem reportado a tomada, dia após dia, de cidades afegãs pelo grupo Talibã.
O avanço do Talibã nas cidades afegãs tem sido acompanhado por inúmeros atentados. Somente entre maio e junho, aproximadamente 2.400 afegãos foram mortos ou ficaram feridos, em meio ao combate entre as forças Talibãs e as forças do governo afegão. Ainda, desde janeiro de 2021, estimativas do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) indicam que aproximadamente 270 mil afegãos já deixaram suas casas, seja rumo a outros países ou para outras regiões do Afeganistão. Dentre aqueles que buscam uma saída do país, há uma parcela relevante de pessoas que atuaram em cooperação com as forças internacionais ocupantes e, agora, buscam asilo nos Estados Unidos, temendo represálias por parte das forças talibãs.
Em meio à reascensão do Talibã, os dilemas da retirada ou permanência das tropas norte-americanas têm ressurgido com força no debate público. Afinal, deve o governo norte-americano dar continuidade à retirada de tropas na região? Ou, tendo em vista a retomada do controle de regiões importantes do Afeganistão pelo Talibã, Washington deve rever sua decisão e, eventualmente, voltar atrás? Caso os Estados Unidos complete a retirada de tropas conforme planejado, estaríamos assistindo ao risco de eclosão de uma nova guerra civil no mundo? Por trás destas questões e preocupações reside uma percepção forjada há, pelo menos, 20 anos, quando as primeiras tropas norte-americanas invadiram o Afeganistão. Qual seja, a de que os Estados Unidos ainda atuam como uma força garantidora da ordem e da paz na região.
Desde a entrada das tropas dos Estados Unidos e aliados no Afeganistão em outubro de 2001, estimativas dão conta de que o governo norte-americano gastou aproximadamente 2 trilhões de dólares nos últimos 20 anos de ocupação, em uma guerra que mobilizou mais de 140 mil forças militares provenientes de mais de 36 países, quase 23 mil contractors e forças de segurança de empresas privadas. Alguns resultados da intervenção foram cerca de 241 mil mortos nas zonas de guerra do Afeganistão e do Paquistão, mais de 2 milhões de refugiados até 2021 e números alarmantes de deslocados internos, segundo dados compilados pela Brown University. Nestas cifras também estão contabilizados 20 anos de inúmeras denúncias de crimes contra a humanidade. Após anos de esforços de manutenção de ocupação pelos Estados Unidos e aliados, o Afeganistão permanece na lista de países mais inseguros do mundo para se viver e ainda registra altos índices de pobreza e violência.
Se, por um lado, os dados recentes nos ajudam a revelar um cenário de graves violências perpetradas pelas forças talibãs, estes dados também nos ajudam a revelar a violência que marcou a ocupação norte-americana no Afeganistão e que, via de regra, também se apresenta em outros territórios ocupados por forças estrangeiras. O que se observa, nesse sentido, é a situação de uma população submetida a sobrepostas formas de violência, perpetradas por forças ocupantes, forças irregulares locais e forças do governo.
A permanência da ocupação norte-americana como condição da ordem, da paz e da estabilidade parece, por este lado, um argumento frágil. E, por outro lado, o contínuo fortalecimento do Talibã também se mostra uma questão trágica para a população afegã. Portanto, quais são as alternativas que restam para um eventual processo de paz na região? Certamente, a resposta não é simples e nos coloca diante de antigos dilemas sobre a ordem internacional, sob novas roupagens. Por hora, o que se pode avaliar é que, independentemente da solução forjada para o Afeganistão, estamos assistindo ao recrudescimento de uma velha-nova onda de crise humanitária no mundo.
*Victória Perino Rosa é mestranda em Relações Internacionais pelo programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP), pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) e do Núcleo de Estudos Transnacionais para Segurança (NETS).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.