Por João Fernando Finazzi *
As atuais informações sobre as circunstâncias do assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse indicam a participação, ou conivência, de agentes próximos de segurança, e o trabalho de “profissionais bem treinados”, nas palavras do embaixador haitiano em Washington. Ao considerar este episódio e o amplo panorama das várias crises que se sobrepõem e se aprofundaram nos últimos anos no Haiti, é preciso ter sempre em mente as relações que eventualmente se estabelecem entre grupos mercenários contratáveis (como as “gangues urbanas”) e a Oligarquia: as grandes famílias “que controlam os principais recursos do país, que sempre instalaram e removeram presidentes e que utilizam as ruas para causa desestabilização”, nos dizeres de Moïse, em entrevista de fevereiro ao El País.
A morte de Moïse, ele próprio acusado por setores da oposição de também possuir suas “gangues”, deve ser avaliada sem nos esquecermos de que, em 2019, soldados veteranos dos EUA e outros mercenários contratados por empresas privadas de segurança foram presos no Haiti. Ou seja, reconhecer que os aspectos transnacionais (atores da sociedade) e internacionais (Estados) estão constantemente presentes na dinâmica política haitiana, incluindo a relação que possui com a violência e o assassinato político.
Se as causas mais imediatas da morte do presidente haitiano ainda são um mistério, a análise do desenrolar de alguns importantes fatos do último mês pode nos ajudar a entender, no quadro da política, a forma com que os EUA, a Oligarquia, o governo haitiano e alguns outros atores da sociedade civil passaram a se organizar nos momentos que antecederam a madrugada do dia 7 de julho.
Os antecedentes imediatos do assassinato do presidente
O destino do governo Moïse é disputado nos EUA
No início de junho, os EUA, por meio de seu secretário de Estado, Anthony Blinken, manifestaram contrariedade à realização de referendo sobre nova Constituição no Haiti. Moïse pretendia modificar a Constituição em momento em que, do ponto de vista institucional, o sistema semipresidencialista do país se encontra em ruínas: o Parlamento é praticamente inexistente, pois o mandato de ? do Senado e de toda a Câmara terminou em janeiro de 2020, e o presidente age, desde então, a partir de decretos.
O referendo, que seria realizado no dia 27 de junho, foi postergado indefinidamente. O anúncio da decisão pelo Conselho Eleitoral haitiano, feito algumas horas após a declaração de Blinken, também coincidiu com a manifestação conjunta, igualmente contrária ao plebiscito, por parte de grupo que poderíamos dizer manifestar a Oligarquia: Associação Turística do Haiti, Associação das Indústrias do Haiti, Câmara de Comércio e Indústria do Oeste (departamento onde se situa a capital, Porto Príncipe) e Câmara de Comércio Americana no Haiti.
A posição do Departamento de Estado reflete aquela defendida em carta enviada ao secretário, no dia 26 de abril, por 69 democratas da Câmara dos Representantes, incluindo todos os que estão no Subcomitê de Relações Exteriores do Hemisfério Ocidental. Trata-se de um gesto de distanciamento do governo dos EUA frente ao presidente do Haiti e a manifestação do aprofundamento da articulação transnacional, que se registra desde ao menos 2019, entre setores da sociedade civil haitiana e estadunidense e que tinha como objetivo declarado a retirada de Moïse.
A carta dos congressistas, mais crítica a Moïse do que a posição expressada por Blinken, é contraditória, e indica um dos pontos de tensão sobre o qual provavelmente se desenrolará o atual momento da crise haitiana, pois pede ao Departamento de Estado que respeite, ao mesmo tempo, a auto-determinação do Haiti e a submissão do processo eleitoral aos “padrões internacionais”:
“(...) [O Departamento de Estado deve] escutar as vozes da sociedade civil haitiana e as organizações de base, as quais têm sido claras que nenhuma eleição sob a atual administração no Haiti será livre, justa e crível. O Departamento de Estado deve focar nas questões subjacentes à legitimidade democrática identificadas pela sociedade civil Haitiana e apoiar um processo de mudança liderado pelo Haiti. Eleições realizadas sem alcançar padrões internacionais de aceitação para participação e legitimidade somente irão enfraquecer a fé na governança democrática, desperdiçar recursos escassos e perpetuar um ciclo de instabilidade política e violência.
3. Claramente identificar e comunicar ao Congresso quais métricas específicas vocês [presidência dos EUA] irão usar para avaliar se as eleições do Haiti serão livres e justas (...)”
4. (...) Mais do que tomar lados numa disputa política interna, os EUA devem escutar e reconhecer todas as vozes. É o povo haitiano quem irá determinar a legitimidade dos seus líderes, e não qualquer governo estrangeiro.”
A intransigência na posição dos congressistas de que “nenhuma eleição sob a atual administração no Haiti será livre, justa e crível” é também reflexo da intensificação do movimento transnacional de setores da sociedade civil haitiana e da diáspora, cuja expressão pode ser localizada, ainda, na presença de algumas organizações durante audiência do Comitê de Relações Exteriores da Câmara dos EUA em 12 de março de 2020. Por outro lado, no seu comentário de início de junho, Blinken manifestou a continuidade do apoio da presidência dos EUA à realização das eleições presidenciais, programadas para setembro deste ano. Esta posição era, até a morte de Moïse, compartilhada pelo escritório da ONU no Haiti, que visa monitorar e auxiliar nos programas de desenvolvimento e de promoção da estabilidade, e pela missão da OEA que esteve no país em junho de 2021 para tentar ajudar na mediação da crise e estabeler recomendações para o Haiti. Blinken, contudo, destacou: “se os passos apropriados para a sua realização forem dados”.
As reverberações da escalada da crise haitiana e do impasse sobre as eleições, que ora se apresenta nos EUA na relação entre parte do congresso e a presidência, têm atingido a OEA (e provavelmente chegará à ONU), onde se irá manifestar, então, se o processo eleitoral, previsto para setembro deste ano, respeitou os “padrões internacionais de aceitação para participação e legitimidade”.
Fato é que, para parte significativa da oposição haitiana, desde ao menos a intervenção de 2004 (e notadamente a partir do caso do cólera, como também reconheceu recentemente o próprio ex-secretário-geral da ONU, à época, Ban-Ki-Moon), ambas organizações, e os principais Estados que se engajaram diretamente nas ações no Haiti, tornaram-se atores pouco confiáveis para as tentativas de mediação. Daí a recusa de parte de lideranças da oposição em se encontrar com a missão de junho da OEA (composta por EUA, Canadá, Costa Rica, Equador e São Vicente e Granadinas) - fato que não foi reportado no relatório da própria organização! - e a objeção, veiculada na OEA pelos embaixadores de Santa Lúcia e Antígua e Barbuda, ao relatório e às recomendações da missão.
Nacionalismo, anti-imperialismo e violência no Haiti
O histórico de constantes intervenções internacionais no Haiti e de articulações transnacionais de diversos atores da sociedade civil também têm mobilizado reações nacionalistas cada vez mais relevantes. No final da semana que precedeu a visita da OEA ao país no início de junho, ao menos nove estações policiais foram atacadas e saqueadas por grupos armados em Porto Príncipe, sendo que seis ocorreram quase simultaneamente, na noite do dia 5. É preciso destacar que, com exceção do período entre 2000 e 2004, desde 1994 a Polícia Nacional Haitiana é treinada, armada e equipada por uma coalizão de atores liderados pelos Estados Unidos.
No final do mês de junho, o grupo armado “G-9 e Aliados”, tido por alguns como um dos aliados de Moïse, passou a se definir como revolucionário e nacionalista, invocando o mote e a memória do Exército Indígena (como chamaram as lideranças da Independência e da Revolução Haitiana chamaram a si mesmos) e de Charlemagne Péralte (líder guerrilheiro que lutou contra as tropas dos EUA durante a ocupação que se iniciou em 1915). Em sua declaração, o grupo denunciou setores da sociedade civil que compõem esta articulação transnacional como aliados do imperialismo norte-americano e da Oligarquia - notadamente, a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos, uma das responsáveis por liderar as denúncias de violências por parte do comandante da G-9, Jimmy Cherizier, e que levou à embaixada dos EUA a incluí-lo, no final de 2020, na sua lista de sanções, tendo-o como um dos responsáveis pelo massacre de La Saline em 2018.
A relação nem sempre amistosa entre o Haiti e a República Dominicana tem sido por vezes citada por especialistas para aumentar a suspeita do envolvimento do país vizinho no assassinato de Moïse. A insurreição armada que ocorreu no Haiti entre 2000 e 2004 e que culminou com a retirada de Jean-Bertrand Aristide da presidência foi feita a partir da organização de tropas insurgentes no Oeste haitiana, próximo à divisa - com relatos que indicam uma possível participação da Rep. Dominicana e dos EUA. No entanto, devemos dar a devida importância ao acordo realizado pelo então presidente Moïse com o país vizinho no início de 2021, para declaradamente assegurar o controle sobre os seus fluxos transfronteiriços. Moïse certamente tinha em mente este episódio passado. Portanto, o envio de soldados dominicanos para a fronteira, em fevereiro, dever ser lido mais como aceno diplomático, do que como uma resposta a uma ameaça de “spill-over”, ou “transbordamento”, da crise haitiana.
A continuidade do impasse haitiano
Agora, em julho, Moïse tinha a opção de seguir as recomendações da OEA: nomear um novo primeiro ministro e alterar a composição do Conselho Eleitoral. No entanto, apenas a sua saída imediata, fosse qual fosse a forma que ela ocorresse, e a formação de um governo provisório até fevereiro de 2022 iriam satisfazer a posição de parte da oposição haitiana e aquela expressa pelos congressistas norte-americanos.
Com a sua morte, no entanto, o impasse que incide sobre a sociedade haitiana ainda não se resolveu: já era de conhecimento público que o primeiro ministro que assumiu o comando do país, Claude Joseph, estava em vias de ser substituído por Ariel Henry, que chegou a ser nomeado por Moïse. A própria OEA sugeriu no relatório citado que um novo premiê e um novo Conselho Eleitoral deveriam ser nomeados, de modo a auxiliar no reconhecimento da legitimidade das ações do governo e da realização das eleições, que estão programadas para setembro deste ano.
O impasse segue, também, em razão da clara posição de Henry, que reivindica ser ele, e não Joseph, o primeiro ministro. Nas horas que se seguiram ao assassinato de Moïse, Anthony Blinken implicou o reconhecimento de Joseph como premiê, ao oferecer a ele as condolências do Departamento de Estado dos EUA. Ainda, em reunião emergencial feita a portas fechadas, o Conselho de Segurança da ONU também reconheceu Joseph como líder do país. Resta saber se Joseph irá seguir o difícil caminho da posição comum compartilhada pelos congressistas norte-americanos assinantes da carta, pelo relatório da OEA e pelo próprio Henry: dissolver o Conselho Eleitoral e, ele próprio, retirar-se do poder.
*João Fernando Finazzi é doutorando em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.