Por Beatriz Marques *
Os direitos dos povos indígenas estão sob ataque, do Brasil ao Canadá. Nas últimas semanas, no Brasil, a aprovação do PL490 pode tornar ainda mais vulneráveis os povos indígenas do país ao colocar em risco a demarcação de seus diversos territórios. No dia 23 de junho, a Câmara de Comissão e Justiça (CCJ) aprovou o parecer do relator do projeto de lei (PL) 490/2007. Mediante aprovação, o projeto pode virar pauta no plenário da Câmara dos Deputados. O projeto, defendido pela bancada ruralista, abre caminho para o garimpo ilegal e os interesses do agronegócio ao permitir que a expropriação de terras indígenas seja por meio do contato forçado, o que acaba por colocar em risco os povos índigenas que vivem isolados, e também pela inclusão de terceiros na tomada de decisões que podem inviabilizar o processo de demarcação.
No Canadá, o descobrimento de restos mortais de crianças indígenas em antigas escolas religiosas recolocam a necessidade de repensar o processo e a superação dos impactos da colonização no país. O legado das escolas residenciais ainda assombra a população indígena no país, pois o genocídio dos povos aborígenes respousou sobre o funcionamento destas escolas, responsáveis por separar mais de 150 mil crianças aborígenas de seus famílias e povos de origem. Hoje, existem quase um milhão e meio de indígenas vivendo no país, localizados nas grandes cidades ou nas reservas na parte oeste e norte do território canadense. O preconceito e o racismo ainda são os maiores fatores que impedem a integração social efetiva daqueles que buscam viver nas grandes cidades.
Ao menos 1100 restos mortais são encontrados em terreno de antiga escola destinada a educação indígena no Canadá
Exatamente um mês antes da data em que é celebrado o “Canada day” (dia do Canadá), em primeiro de julho, considerado o feriado mais importante do país, foram descobertos 215 restos mortais de crianças indígenas perto de uma antiga escola cristã destinada à educação de indígenas. Já foram achados pelo menos 1,300 restos mortais e ainda estão averiguando possíveis novas covas. As escolas residenciais começaram a operar efetivamente na metade do século XVIII com financiamento do governo e administração das igrejas Católica, Metodista, Presbiteriana e Anglicana, .A última escola desse tipo encerrou as suas operações somente em 1996.
O seu objetivo era retirar “o indígena” das crianças nativas por meio de abuso físico, psicológico e até mesmo sexual. Isto é, transformá-las em indivíduos sem mais vinculação ao modo de vida originário e adaptada à sociedade colonial branca, europeia e capitalista. Relatos mostram que crianças eram agredidas ao tentarem se comunicar nas línguas nativas e morriam em circunstâncias suspeitas, seja por acidentes ou tentativas de fuga.
Desde o descobrimento dos restos mortais nas escolas, a hashtag #CancelCanadaday (#CanceleODiaDoCanadá) vem ganhando notoriedade nas redes sociais. A indignação da população como um todo foi tamanha que devido à magnitude dessa descoberta, levando em consideração o passado colonial do país, neste ano o famoso feriado não traria motivo para celebração. Em tweet, o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, lamentou as mortes. Até mesmo o representante da Igreja Católica, papa Francisco, lamentou o ocorrido, mas o Vaticano não emitiu nenhuma nota assumindo a responsabilidade pelas mortes.
Ao tomar as ruas, as manifestações a favor do cancelamento do feriado propõem o uso de vestimentas na cor laranja em homenagem às crianças, ao invés do tradicional branco e vermelho, cores da bandeira canadense. O uso da cor laranja é para expressar solidariedade para com as vítimas e sobreviventes que passaram por abusos nas escolas religiosas, seu uso é simbólico. Uma marcha promovendo o #CancelCanadaday em frente ao parlamento de Ottawa ocorreu no dia 1 de julho para reivindicar o uso do dia como forma de reflexão e não mais de celebração. Segundo um dos manifestantes, “o país estaria de luto por conta desta tragédia, que precisará de investigações mais contundentes e não será facilmente esquecida”.
Resistência a aprovação do projeto PL 490: os povos indígenas no Brasil vs. o governo Bolsonaro
Desde sua campanha eleitoral à chegada à presidência, a agenda do atual governo Bolsonaro pouco se importou com a preservação dos direitos dos povos indígenas no país. Somado ao um contexto pandêmico, os povos indígenas precisaram enfrentar não somente as diversas mazelas que atingem seu cotidiano, como o garimpo ilegal, mas também a disseminação do Covid-19 em seus territórios. Epidemias resultantes do contato forçado com os colonizadores europeus historicamente contribuíram para o extermínio dos povos originários no território brasileiro. Portanto, não há como descartar o risco do genocídio indígena causado pelo contágio na pandemia descontrolada no país. Por causa disso, os povos indígenas estão entre os grupos prioritários na campanha nacional de vacinação contra a pandemia causada pelo Covid-19 no Brasil.
O PL 490/2007 proposto pela bancada ruralista determina que a demarcação de terras indígenas seja feita pelo Legislativo ao invés do Executivo, como é realizada atualmente. O projeto prevê a imposição do marco temporal (uma das medidas mais problemáticas que visa contestar o direito de território dos assegurado pela Constituição), a permissão para que o governo construa rodovias, hidrelétricas e outras obras em terras indígenas sem comunicar aos povos; contato forçado com os povos isolados; abertura das terras para exploração predatória como minério, garimpo e agronegócio; e a participação de estados e municípios no processo de demarcação de terras.
Se aprovada, esta lei coloca em risco pelo menos 66 territórios, 70 mil pessoas e 440 mil hectares. A volta do marco temporal é algo preocupante, pois se baseia na lógica de que os territórios demarcados ou em processo de demarcação devem comprovar a ocupação no dia 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. Todavia, os povos indígenas se encontram nesses territórios antes mesmo da criação do Estado brasileiro. Caso essa medida for aprovada, “está dada a sentença de morte dos povos indígenas e com ela, o fim da preservação ambiental no Brasil”, segundo ativistas que apoiam a causa. Em defesa de seus direitos e motivados pelo movimento Levante pela Terra, indígenas de diversos povos diferentes se reuniram para protestar contra o avanço de projetos anti-indígenas.
O que use esses movimentos: forma de resistência
Embora tais articulações ocorram em momentos separados no tempo histórico e geograficamente, a descoberta dos restos mortais de crianças indígenas em escolas residenciais no Canadá chama atenção para a política de extermínio dos indígenas e o seu papel para a construção da identidade do país atualmente, mesmo que hoje o Canadá seja celebrado por aceitar a vinda de estrangeiros. O mesmo vale para o Brasil, que também teve grande influência da Igreja Católica na catequização dos povos indígenas. Atualmente, os nativos no Brasil enfrentam uma pandemia mortal, um governo que não preza por seus direitos garantidos pela Constituição e um projeto de lei de caráter totalmente genocida que visa o verdadeiro extermínio dos povos indígenas no país. O direito que os povos indígenas lutam a nível global na atualidade é apenas um, o direito de existir.
*Beatriz Marques esquisadora do GECI e graduanda em RI pela PUCSP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.