Há uns anos eu tive uma gastroenterite grave, em Toledo, na Espanha. Precisei de atendimento médico e fiquei internado um dia e meio porque estava desidratado.
Ao chegar no Hospital Virgen de la Salud, depois da triagem, momento em que precisei relatar meus sintomas, fui logo chamado por uma médica.
Entrei na sala, dei bom dia e sentei.
"Hola, Henrique... ¿Caga sangre?"
Achei que não tinha ouvido direito.
"Perdón... ¿Que dijiste, doctora?"
Com a paciência típica dos espanhóis, ela repetiu em voz alta a pergunta, para que todo o andar ouvisse.
"Se caga sangre... ¿Caga sangre?"
Fiquei acuado. Sem graça. Mas afinal, era uma consulta médica.
"No... No cago sangre."
Notei depois daquele episódio insólito que os espanhóis tem uma relação com o cocô bastante sincera. O cocô é assumido por lá e naturalizado. E o fenômeno parece ser ibérico, porque algo parecido ocorreu uma vez em Lisboa.
Perguntei à atendente da pensão onde me hospedei algumas vezes por um rapaz que trabalhava no local e que tinha ficado de me dar umas orientações sobre condução para ir a uma freguesia afastada. Ela foi bastante objetiva na resposta.
"Francisco? Estava cá agora mesmo... Acho que foi cagar."
Mas deixemos essas memórias fecais de lado e voltemos nossa atenção à confissão presidencial de ontem.
O presidente Jair Bolsonaro, num dia lindo de inverno, sem uma nuvem nos céus de Brasília, desce do veículo blindado de sua comitiva, dirige-se ao cercadinho da insanidade e, sem rodeios, sai do armário.
"Eu sou igual ao cocô de vocês!"
Uns frames de silêncio confusos se impõem, enquanto uma tiete rápida no gatilho solta um consolo quase involuntário... "Ah, você é lindo... Mais lindo ainda ao vivo."
Os segundos se passam e segue a sensação de choque. Depois de cagar na vida pública por mais de 30 anos e admitir que cagou para os 537 mil mortos na pandemia, uma confissão dessas, por mais que não seja novidade ou segredo pra ninguém, é surpreendente.
Bolsonaro resolveu, assim como os espanhóis e portugueses, naturalizar o cocô. E o fez sem dar pistas ou indícios de que se assumiria. Veio assim, de sopetão, com um sorriso no rosto, sem medo de ser feliz. E o naturalizou para si, tirando as máscaras do pudor e assumindo quem é e o que sempre foi.
"Eu sou igual ao cocô de vocês!"
Particularmente gosto e dou valor à sinceridade.
Mas sempre tem alguns que veem nesse tipo de episódio algum grau de oportunismo. "Ah, isso é cortina de fumaça, é pra tirar o foco da corrupção".
Assim como há outros que não têm dúvidas quanto a falta de integridade mental do presidente. "Vai sair de lá numa camisa de força, direto pro hospício... Tá variando."
Seja como for, ver um homem que chegou à chefia da República após tantos anos cagando na sociedade com vigor e resiliência, intitular-se assim, admitir que é um cocô, sem receio do que os outros vão pensar, é de encher os olhos d'água. Conforta o coração.
Quero deixar ao nosso presidente os meus parabéns pela coragem de enfrentar a realidade e dar nome às coisas e a si.
Como disse em certa ocasião José Saramago, o gênio português da literatura universal, "dentro de nós há uma coisa que não tem nome e essa coisa é o que somos."
No seu caso, Jair (permita-me a intimidade), é exatamente isso. Dentro de você está cheio daquilo que você é, mas no seu caso há nome.
Cabe agora ao povo brasileiro aguardar com ânsia pelo jubiloso dia da descarga nacional, quando o destino e a História olharão em nossos olhos e dirão:
“Mããããe, já acabei!”
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.