A historiadora Laura de Mello e Souza, para analisar a feitiçaria e a religiosidade popular no Brasil colonial, segue a perspectiva adotada por Robert Mandrou que define feitiçaria de forma simples: “concretiza-se com a existência do contrato ou pacto demoníaco”.[1]
A burguesia brasileira é como o feiticeiro. Com os porta-vozes da imprensa, criou um ódio incontrolável contra o petismo e à esquerda e assim se uniu a Bolsonaro para derrubar o PT.
Como diziam Marx e Engels, “a moderna sociedade burguesa, que fez surgir como que por encanto possantes meios de produção e de troca, assemelham-se ao feiticeiro que já não pode controlar as potências infernais por ele postas em movimento".[2] Os autores do Manifesto Comunista se referem às crises comerciais sazonais que fogem do controle dos capitalistas. Mas podemos também pensar na extrema direita que nasce dessas crises e pela demonização da esquerda promovida pelo capital.
No Brasil, temos como exemplo a ditadura civil-militar de 1964 e, atualmente, no bolsonarismo. A burguesia, como feiticeira, fez um pacto com demônio (bolsonarismo) para impedir o desenvolvimento das forças progressistas.
Os críticos culturais dos finais dos anos 1990 observavam este fenômeno nos Estados Unidos. Uma “estranha combinação de mercados, retorno às tradições e valores perdidos, educação religiosa e gerenciamento dos critérios rigorosos e garantia de ‘qualidade'"[3], que buscava formar indivíduos submissos ao capital, entregues à produção e competição sem o mínimo senso crítico.
No Brasil, esta aliança bizarra, que vimos no BolsoDoria em 2018, tornou-se também macabra por promover um número enorme de morte e destruição.
Mas com a chegada de Bolsonaro ao poder, logo esse pacto procurou ser desfeito, embora muitos setores do empresariado permaneçam ao lado do presidente neoconservador. Enquanto Bolsonaro prefere mostrar a verdadeira face do capitalismo (desigualdade social, aumento da exploração da classe trabalhadora, desmonte do setor público, destruição do meio ambiente), o outro lado do pacto, os feiticeiros, procuram manter o véu ideológico da racionalidade técnica, defendendo o lucro racional. Isto é, uma exploração do trabalho baseada na lógica capitalista (e desigual) para o crescimento da economia.
Portanto, esta aliança foi necessária para que os neoliberais conseguissem precarizar a mão de obra, principalmente por meio da uberização, usando a “doutrina do choque” e desvirtuando os interesses de classe dos trabalhadores para questões morais.
Em Portugal do século XVI, o pacto com o demônio era consagrado quando se dava “um pedaço de carne do corpo ou o sangue de um membro (a mão esquerda ou o pé esquerdo)”.[4] Já no Brasil colonial, como mostra Mello e Souza, “na época da Primeira Visitação” do Santo Ofício, um tal de Borges “fazia contratos demoníacos para clientes, tomando-lhes o sangue para o diabo".[5]
Mas no mundo contemporâneo, o pacto realizado entre a burguesia neoliberal e os neoconservadores arranca o sangue dos mais vulneráveis, ou seja, da classe trabalhadora. É a primeira vez que mais gente morre do que nasce em algumas cidades do Brasil. “Nas últimas décadas, a diferença entre nascimentos e óbitos já vinha caindo gradualmente no Brasil, mas o excesso de mortes durante a pandemia está acelerando o encontro destas duas curvas, algo que o IBGE projetava que deveria acontecer apenas daqui a mais de duas décadas, em 2047”.[6]
O pacto com o diabo ceifa a vida dos mais pobres, precariza o trabalho, enquanto que o número de bilionários brasileiros cresceu de 45 em 2020 para 65 em 2021.[7] Esse fenômeno comprova a fórmula do ut des, ou seja, “dou para que dês" que marca a relação entre os humanos e o demônio[8]. Dá-se o sangue e a vida dos pobres para o enriquecer os mais ricos.
O pacto está sendo desfeito e os neoliberais estão dispostos a se aliar com a esquerda para tirar o inimigo do poder. Mas o estrago que provocaram não terá reparo. E a esquerda precisa tomar muito cuidado para não cair, mais uma vez, no feitiço da burguesia.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
[1] SOUZA, Laura de M. O diabo e a Terra de Satã Cruz. 2ed. São Paulo: Cia das letras, 2009, p. 207.
[2] Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, Martin Claret, São Paulo, 2006, p. 50.
[3] APPLE, M. Educação à direita. São Paulo: Cortez, 2003, p. 37.
[4] BETHENCOURT, F. O imaginário da magia. São Paulo: Cia das letras, 2004, p. 188.
[5] Souza, p. 336.
[6] https://www.google.com/amp/s/brasil.elpais.com/brasil/2021-04-09/cidades-ja-somam-mais-mortes-que-nascimentos-em-desvio-de-curva-que-pode-avancar-em-todo-brasil.html%3foutputType=amp
[7] https://www.google.com/amp/s/economia.uol.com.br/noticias/bbc/2021/04/07/lista-bilionarios-forbes-brasileiros-crescimento-recorde-pandemia-covid-19.amp.htm
[8] Betencourt, p.