Army of The Dead: Invasão em Las Vegas – Filme ruim também diverte? – Por Filippo Pitanga

Como produções genéricas da Netflix e afins ocupam as tardes chuvosas do fim de semana e feriado, mas ficam no zero a zero em termos de sobrevida de produção

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Eis que advém na mente um célebre monólogo do personagem Anton Ego (um nome cujos radicais já aludem às palavras ‘antagonismo’ e ‘ego’), que era um crítico gastronômico no filme “Ratatouille” (2007):

“De muitas formas o trabalho de um crítico é fácil. Geralmente temos muito pouco risco a correr, mas sorvemos da posição de quem se põe sobre a obra daqueles que nos oferecem a mesma para julgamento. Nós prosperamos em críticas negativas, que são divertidas de se escrever e de se ler. Mas a amarga verdade que nós críticos devemos encarar é que no quadro maior das coisas, a obra mais comum é provavelmente mais significativa do que nossa crítica que a designa. Mas há momentos em que o crítico realmente arrisca algo, e é na descoberta e defesa do novo. O mundo geralmente é indelicado com novos talentos, com as novas criações. E o novo precisa de amigos.”

Engraçado que críticos em geral são pessoas vistas como rabugentas e excessivamente analíticas das coisas... Sejam críticos gastronômicos ou de cinema. E é bem verdade que críticas negativas de fato divertem. Porém, podem também ser fontes de enriquecimento em relação ao material fílmico, expandindo o universo onde está mergulhada a obra e a linguagem com que se exprime – senão para seus respectivos diretores, que talvez jamais venham a ler tal texto, mas para seus espectadores que podem complexificar o paladar e demandar do mercado um desafio maior da próxima vez.

A nova bomba da vez em questão é “Army of The Dead: Invasão em Las Vegas” (2021), filme de zumbis que se pretende descolado e dirigido por Zack Snyder, cineasta bastante popular de blockbusters que adaptaram famosas histórias em quadrinhos como “300” (2006), “Watchmen” (2009) e “Batman Vs Superman: A Origem da Justiça” (2016).

Vamos começar lembrando que Snyder acaba de ser o pivô de milhões em investimento para expandir uma versão do diretor de um filme que já não havia sido tão bem acolhido, e mais uma vez gerou polêmica ao receber uma segunda chance: “Liga da Justiça”, longa-metragem que abarcou principais super-heróis e heroínas da DC Comics, como Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha. Em 2017, o filme havia sido lançado com outro cineasta assumindo e assinando a batuta, Joss Whedon (de “Vingadores”, 2012), por impossibilidade de Snyder ter prosseguido no projeto naquela época. Eis que, em 2021, é lançado o Snyder Cut, com o corte definitivo de Zack, tendo chegado a refilmar algumas cenas, além de mudar o filtro e a janela de projeção para dar uma impressão autoral em mais de quatro horas exaustivas de projeção.

Esses caprichos e privilégios, na verdade, apenas fingem atender ao clamor dos fãs, mas acabam de modo muito mais interessante reacendendo de novo a polêmica de o quanto a ficção anda atuando como “fan service” (apenas para agradar aos fãs, e não para servir à dramaturgia). Vide o escândalo do final de “Game of Thrones” em 2019, que abandonou as intenções originais do autor e quis polemizar os chamados da internet...

Mas o quanto o público manda ou deve influenciar nas produções para além de uma visão artística que se pretenda universal? Como alcançar algo que exprima mais um diálogo com reflexões relevantes de nossos tempos do que com afetações passageiras do coração partido dos fãs?

Snyder, acima de tudo, é um profundo cinéfilo, ele próprio sendo fã de assinaturas muito bem delineadas por seus ídolos. Não à toa, “Army of The Dead: Invasão em Las Vegas” não é a primeira incursão do diretor no universo pós-apocalíptico dos zumbis, pois ele já havia homenageado uma de suas maiores referências na sétima arte, George Romero, com a refilmagem em 2004 do original homônimo “Dawn of The Dead” (1978).

O exemplar atualizado para a nova geração, com o nome em português de “Madrugada dos Mortos”, acertava na estética e no tom que dialogava com questões modernas, como o consumismo exagerado e a descartabilidade humana perante uma vida transformada em produto. Sem falar no mérito de ter ampliado a interseccionalidade de gênero e raça que já existia no original. O equilíbrio entre humor, ação e suspense foram muito fortuitos e realçava o bom elenco a misturar especialistas em cada um dos gêneros cinematográficos citados.

Já nessa famigerada estreia de Snyder numa produção Netflix, “Army of the Dead”, ainda mais tão colada com o burburinho do prepotente corte para “Liga Da Justiça”, acaba descortinando um de seus maiores calcanhares de Aquiles: a megalomania... Não um problema por si só, pois é uma característica até muito bem vista em Hollywood. Contudo, acaba se tornando, de forma oca, uma aposta grandiloqüente de proporções exageradas em espetáculo que poderia ser mais pungente se fosse algo original. E nem isso Snyder conseguiu, indo na contramão do tom do mestre dos zumbis George Romero, o qual havia evoluído seus filmes gradativamente de mãos dadas com o público – de modo a que a suspensão da realidade se tornava crível e ampliava a crítica social – algo muito mais elegante do que Snyder costuma fazer.

Só para dar um exemplo mais recente, quando chega num de seus últimos clássicos de zumbi antes de falecer alguns anos depois, “Terra dos Mortos” (2005), Romero inverteu a crônica, e faz os zumbis serem os injustiçados, organizando-os em torno de um líder negro (protagonismo de identidade racial presente em todos os seus filmes), cuja inteligência e formas de comunicação estavam ultrapassando o clichê do morto-vivo sem pensamento próprio. E mais do que isso, pois esta nova liderança se volta contra a bolha elitista dos sobreviventes do apocalipse que se tornou excludente e intolerante até para os não-zumbis, que são expulsos à própria sorte.

Mas por que estamos falando de Romero para falar de Snyder? Por motivos de que seu novo filme na verdade bebe de novo da fonte do saudoso mestre, diretamente, por sinal, mas falha em dialogar com a parte mais visceral que foi ora distorcida. Em “Army of The Dead: Invasão em Las Vegas”, temos igualmente zumbis inteligentes e mais rápidos, que estão evoluindo a sua própria organização coletiva e desafiando as leis da natureza em pensar e reproduzir de forma biológica.

A diferença começa no fato de que o grupo de sobreviventes que irá enfrentar os mortos-vivos aqui possui motivação completamente supérflua e egoísta, que seria roubar dinheiro de um cofre, a mando de um empresário mancomunado com o exército, horas antes de explodirem uma bomba atômica na cidade, para tentar uma segunda chance quando saíssem de lá...

O pior mesmo é que o dinheiro fala tão alto, mesmo numa Terra destruída, que, no final das contas, os zumbis voltam ao lugar de irrelevância. Mesmo lutando por uma causa mais nobre e darwiniana, eles voltam a ser apenas um fiapo de estereótipo comedor de gente pra servir como desacelerador para a trama já anunciada desde o trailer: roubar o dinheiro e explodir a bomba. Nada mais. Nada menos.

Estamos falando de Las Vegas aqui, um signo cheio de interpretações pela própria bagagem per si, mas cujo estofo vai sendo esvaziado somente como desculpa estética, para vermos desfilar pela tela coristas semi-nuas zumbis, truques de mágica e tigres zumbis, letreiros queimados e caça-níqueis explodindo em moedas em meio a muitos zumbis... Nada mais. Nada menos. E todos os estilos adotados no meio disso, como até romance entre os mortos-vivos, ou a organização de milícia treinada com táticas de guerra, deixam de ser evolução de personagem para virar esquetes fugazes.

E olha que estamos falando apenas dos comedores de cérebros até agora. Já os vivos, você pode perguntar? Esses são menos relevantes ainda, com rara exceção. Há os arquétipos de sempre, desde o aproveitador em quem ninguém pode confiar (Garret Dillahunt da série “Fear The Walking Dead”, 2018-21), o herói inabalável e musculoso a salvar todo mundo (Dave Bautista, de “Guardiões da Galáxia”, 2014) e a filha deste que será inocente e nobre o filme inteiro (Ella Purcell de “O Lar das Crianças Peculiares”, 2016), aparentemente vulnerável, mas cuja curva de ascensão na trama provará que ela era a mais apta para o novo mundo desde o princípio. Alguma surpresa? Não.

Cadê os vilões? Todo fã de zumbi sabe que os humanos são sempre os piores inimigos de si mesmos... E até possuem bons intérpretes para encarná-los, como o quase sempre ótimo Hiroyuki Sanada (de “O Samurai do Entardecer”, 2002), representante do capital, dos políticos e dos militares ao mesmo tempo, e que sobra ingloriamente na trama, quase como se quisessem trabalhar melhor a ponta solta numa sequência.

Isso esvazia a crítica ao capital e parece reforçá-lo, na realidade, pois este ponto encerra mais vívido do que a crítica inicial de sociedade paralela dos zumbis, cujo impasse vira pó nas linhas do roteiro. Ou seja, de crítico ao absolutismo tanto de Batman quanto de Super-Homem em seus potenciais autoritários, Snyder acaba preferindo abraçar uma diversão escapista que reafirma ideais reacionários...

Até aqui leitores desta coluna podem estar se perguntando onde iremos abordar a parte em geral mais chamativa dos projetos de Snyder, o frenesi escalafobético, que não deixa pensar muito antes de o próximo arco arrebatar de volta com adrenalina as telonas do cinema (ou do streaming de casa), mas o fato é que seu novo trabalho possui tantas barrigas narrativas quanto falta de inspiração cênica.

Tirando uma boa direção de coreografia de lutas, aplicada de forma eficiente, de fato, numa única cena claustrofóbica com a personagem subaproveitada de Samantha Win, justamente porque a atriz é coordenadora de dublês, não há praticamente aproveitamento algum dos arquétipos clássicos de zumbis. Pelo contrário, ao invés de sustos, sombras e vísceras, ou mesmo a anarquia de hordas comedoras de gente, o que vemos é um exercício paramilitar de tiro, bomba e explosões cartesianas. Tudo tão arrumadinho que está mais organizado do que a pandemia atualmente no Brasil.

Raríssimas são as cenas que de fato emocionam, até porque você imagina que um elenco enorme como o deste filme irá morrer um a um, com a mesma indiferença para o espectador com que começaram, já que praticamente nenhum foi desenvolvido... – Com única exceção da revelação francesa de origem austríaco-egípcia Nora Arnezeder, na pele de Lilly (Coiote), cujo papel se desdobra de formas muito interessantes e ambíguas. Tirando ela e o fato bastante curioso de um ator cancelado por acusações de assédio (Chris D’Elia) ter sido trocado depois das filmagens pela comediante Tig Notaro, que o substituiu de forma criativa em cenas filmadas a sós na pós-produção, nada mais chama atenção, nem os protagonistas. Bautista não está mal, mas também não possui o carisma de um The Rock, e tampouco foi trabalhado no roteiro para tal.

Em termos de estrutura, a trama segue a espinha dorsal de um filme de golpe, pois, afinal de contas, um assalto irá ocorrer. Essa idéia que poderia ser interessante, ao juntar a ilicitude do roubo principal com a quebra de todas as regras e leis no Armageddon, ao invés disso se torna numa expectativa por preparativos lentos e anticlimáticos, aguardando o final de quase 2h30 de projeção para uma nova forma de perseguição e recompensa, mudando a motivação de quem merece ou não ser redimido... – e desperdiçando solenemente a estrutura originária do gênero cinematográfico a que se pretendia homenagear: os zumbis. E isso porque nem podemos dar spoiler do Deus Ex-Machina com o cofre na última cena, pois seria uma ideia interessante se não fosse tão mal trabalhada.

Tudo isso, por incrível que pareça, pode ser resumido pela entrevista que Snyder concedeu recentemente, quando falou sobre sua vontade de ainda dirigir um filme religioso e um filme pornô em sua carreira. A primeira hipótese demonstra que ele apenas está interessado na faceta sadomasoquista da purgação dos pecados, no automartírio. E a segunda opção demonstra exatamente o que a pornografia pode oferecer, a ultra explicitação, a exacerbação do gozo, a indiscrição em desnudar tudo; o inverso do erotismo, por exemplo, feito de sutilezas e mistérios por deslindar.

Todavia, esse sempre foi seu cinema. Tudo será exposto antes do fim. Há quem goste, e há quem prefira que pelo menos se deixe algo para a imaginação... Não neguemos que possa ser divertido momentaneamente, mas dois minutos depois você já até esqueceu que riu, e talvez esse texto crítico seja a única coisa que irá lembrar do filme. Ou nem isso. Pelo menos não digam que o crítico não avisou!

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.