Chegada da HBO Max e Dia do Orgulho LGBTQIA+ – Por Filippo Pitanga

Vamos conferir como a chegada de novas plataformas de streaming podem ter ampliado a diversidade representativa do cardápio de opções, de “Veneno” a “It’s a Sin” e “The Flight Attendant”.

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Dia 29 de junho de 2021. Sim, hoje é o dia da estreia de “Você Nunca Esteve Sozinha”, o novo documentário em formato de série sobre o fenômeno Juliette Freire, campeã do #BBB21 e participante que mais angariou legiões de fãs e seguidores na internet na história do programa. Porém, não foi à toa que a plataforma Globoplay apostou na força do fã-clube dos “cactos” (forma como eles se autodenominam), que segue tudo de Juliette, e lançou a novidade justo este dia! Há também outra coqueluche chegando... A HBO Max Brasil, com inúmeras produções originais e outras exclusivas da plataforma, que ampliam e muito as opções de representatividade plural tanto temática quanto de produção, ainda mais no dia seguinte ao momento do ano em que é celebrado o Orgulho LGBTQIA+.

Um perfeito exemplo é a melhor minissérie lançada no ano passado internacionalmente, agora disponível para o streaming da rainha HBO: “Veneno”, criada por Javier Ambrossi e Javier Calvo, que foi ao ar no Atresplayer Premium na Espanha de 29 de março de 2020 a 25 de outubro do mesmo ano. A minissérie, que conta a vida e a morte da cantora transexual e personalidade televisiva espanhola Cristina Ortiz Rodríguez, mais conhecida pelo apelido de "La Veneno", é baseada na biografia "¡Digo! Ni puta ni santa. Las memorias de La Veneno" de Valeria Vegas, autora que tinha a artista como ícone norteador para a própria transição de sua identidade de forma livre e emancipatória.

A minissérie segue a abertura de mercado para lugares de fala que não costumam ser contemplados pela indústria audiovisual, como com um elenco principal predominantemente composto por artistas transexuais e/ou travestis – assim como outra série paradigmática, “Pose” de Ryan Murphy, atualmente disponível na Netflix. – A própria Cristina La Veneno é interpretada em suas várias fases adultas por artistas que entendem na pele o que é sentir que nasceu num corpo que a princípio não lhe representava biologicamente. E a personalidade e talento destas intérpretes de fato transbordam a binariedade de um corpo conformado com padrões estéticos impostos pela sociedade...

O destaque fica para as duas últimas fases em termos de idade a interpretar a famosa personagem espanhola, as soberanas Daniela Santiago e Isabel Torres, o que não significa que suas participações deixem de aparecer por toda a minissérie, desde o primeiro capítulo, porque a narrativa é contada de forma não linear... Ou seja, as várias facetas e períodos históricos vão se misturando como num quebra-cabeça, em que não sabemos ainda a ordem nem a ligação de certos fatos, apenas que a minissérie começa com a protagonista já mais velha, um pouco esquecida pelas grandes mídias, mas tentando recuperar o saudoso glamour de ser idolatrada pela nação... Todas as outras intérpretes vão se embaralhando de forma fluida, numa ida e volta típica da própria forma com que La Veneno enxergava a vida.

Não adiantava viver algo, ela tinha de fabular e flutuar por sobre a realidade, de modo a reinventar não apenas o seu mundo como o de todos ao seu redor, e por isso ela era tão fascinante – em vida e na fantasia. É impossível resistir à sua personalidade magnética – que às vezes corria o risco de trair a si mesma, porque quando se vivia sobre nuvens plainando no alto, o perigo sempre é o de cair de um lugar mais alto. E esta ambivalência entre a ambição e a inocência de quem tinha a coragem de viver de seus sonhos, mesmo quando a vida lhe amargava pesadelos, é justamente porque Cristina ultrapassa a mera boa ficção e ganha ares de representar toda uma comunidade transexual e travesti que precisa se reinventar diariamente para viver num mundo que renega muitas vezes suas identidades, às vezes sob o preço de suas próprias vidas (lembremos que o Brasil é infelizmente um dos países recordistas em homicídios transfóbicos).

A minissérie já começa em nota altíssima, com participação de uma das atrizes-assinatura do cineasta Pedro Almodóvar (outro que não é estranho a fazer grandes histórias representatividades com personagens fluidas dentro da sigla LGBTQIA+): nada mais, nada menos que a ótima Lola Dueñas, a qual parece que guiará a narrativa, mas só está lá como participação especial e anfitriã que nos receberá na porteira e introduzirá o real elenco. Ela é quem “descobre” Cristina numa de suas reportagens nas ruas e praças de madrugada aonde vai se encontrar com o universo das mulheres transvestidas. Ao mesmo tempo, somos apresentados à narrativa do futuro, onde a mesma personagem já mais velha é “redescoberta” por um jovem que ainda não havia definido exatamente sua identidade de gênero (na pele de Lola Rodríguez) e que busca na ídola uma tabula referencial (é esta personagem que no futuro será a autora da biografia da artista na vida real, dentro e fora da trama, numa metaliguagem muito bem jogada sobre como a visão dos fãs de La Veneno está ali incluída na própria biógrafa se descobrindo desde jovem).

O primeiro capítulo é tão bem esquematizado em sua montagem temporal no vai e vem histórico que acerta em todas as cores e músicas a simbolizar cada período. Desde a inspiradora trilha sonora (cuja vontade é ouvir em looping no spotify, de Pet Shop Boys a Cyndi Lauper, clique aqui) aos figurinos e cenário, recortando questões de cada fase profissional. A minissérie perpassa desde o período em que ela era uma completa desconhecida ao sucesso triunfal e depois a decadência, além da possibilidade de voltar a brilhar, o que perpassa toda a minissérie sob a égide da interpretação visceral da mais velha das atrizes, Isabel Torres, ao lado da melhor coadjuvante de todos os tempos: Paca “La Piraña”, encarnada pela própria melhor amiga de Cristina na vida real – a maior catarse curativa e metalingüística da história de La Veneno, pois é muito significativo que a personagem verídica tenha aceitado revisitar as vivências compartilhadas.

Os episódios seguintes são menos norteados por seguir as idades temporais e muito mais guiados pelo tema central da respectiva fase de sua vida, que pode permear desilusão, tentação, traição e muitas outras reviravoltas... Seja voltando à infância no segundo episódio (com uma revelação total de intérprete mirim, Guille Márquez), ou fazendo um xeque-mate da tóxica relação que as mídias hegemônicas criam com suas celebridades, numa voracidade corrosiva que endeusa e consome ao mesmo tempo, no brilhante quinto episódio, possivelmente o mais profundo e bem finalizado de toda a minissérie.

E até o encerramento desta saga lírica e épica ao mesmo tempo é completamente não tradicional, pois possui o famoso final feliz no penúltimo episódio, com o melhor uso da trilha até então, completando um ciclo de sonhos e pesadelos que se misturam e catalisam na pista de dança com todas as suas idades se misturando... Até chegar ao destino trágico, verídico, infelizmente, pois, apesar de estarmos tratando de uma poderosa representante de toda uma comunidade que representa o T de LGBTQIA+, somos obrigados a lembrar que é a parte da sigla mais perseguida de todas, e cujas histórias precisam ser contadas para jamais voltarem a ser invisibilizadas pelo monopólio da memória hegemônica. A derradeira seqüência final chega a ter direito a homenagear uma bela cena cinematográfica de despedida e reinvenção que dialoga historicamente desde com o desfecho do famoso “Fellini 8 e ½” de Federico Fellini e “Peixe Grande e Suas Histórias” de Tim Burton.

Além de “Veneno”, outra minissérie bastante representativa disponível na estréia da HBO Max Brasil é “It’s a Sin”, não à toa, título homônimo à clássica música da banda Pet Shop Boys (mais uma vez nomeados na coluna de hoje), e cuja trajetória sempre foi engajada com a causa LGBTQIA+, dentro e fora de suas letras e composições. A minissérie britânica foi escrita e criada por Russell T Davies e desenvolvida pela Red Production Company, dividida em cinco partes que se passam de 1981 a 1991 em Londres. Ela retrata a vida de um grupo de amigos que viveu de forma não binária e dando asas à primeira vez na vida em que tinha a liberdade de experimentar seus desejos livremente, até que acontece a crise de HIV / AIDS no Reino Unido e no mundo.  

Guiados pelos ótimos artistas Omari Douglas, Olly Alexander, Callum Scott Howells, Nathaniel Curtis e a maravilhosa Lydia West (popularizada no Brasil pelo sucesso de outra minissérie britânica, “Years and Years”), o elenco também conta com inúmeras participações especiais que transitam entre experientes atores com dotes cômicos ora em papéis dramáticos (uma boa quebra de expectativa), como os também engajados na vida real com a causa LGBTQIA+ Neil Patrick Harris e Stephen Fry, bem como brincam de representar personagens da vida real de soslaio conforme a história passa por eles, como Margareth Thatcher e até o set de filmagem do seriado Doctor Who, reconstruído dentro da trama como referência de época.

Mas o principal trunfo da obra é a forma como consegue transformar aos poucos o olhar inocente daquelas personagens, que ainda nem sabiam do que se tratava a AIDS, e que tiveram de aprender tudo conforme as piores perdas aconteciam em suas vidas, fortalecendo a amizade do grupo principal da trama que vai ao pouco amadurecendo em militantes. É muito importante inseri-los de forma crível e envolvente dentro da dramaturgia ficcional, inclusive, em movimentos bastante reais com os quais eles passam a colaborar, como o Acts Up (AIDS coalition to unleash power).

Apesar de ter um elenco coral, onde o protagonismo é descentralizado através do ponto de vista de cada uma das personagens, fazendo com que possamos acompanhar cada uma delas em seus núcleos e subtramas, para além dos pontos de encontros a reunir o conjunto total. Suas desventuras são variadas e bastante humanas em vencer preconceitos, especialmente internos, arraigados numa estrutura reproduzida por seus familiares e conhecidos, de modo que vamos aprendendo com cada um deles como a vida pode criar barreiras para a aceitação e a diversidade como se o natural da vida fosse a castração, e não a emancipação e a realização.

Apesar de muitos momentos alegres e até engraçados, não deixa de ser um drama de época, a nos contextualizar uma paranóia imersa na ignorância ainda de não se saber nada (e muitas vezes as pessoas ainda estão envoltas em fecharem os olhos e não quererem saber mesmo hoje, independente de poderem pesquisar no Google).

As cores tipicamente insípidas de Londres no clichê da dramaturgia ficcional vão ganhando contornos de os matizes do arco-íris conforme vamos ganhando liberdade com as personagens, mas que, simultaneamente, enganam também nossa percepção ao inserir o perigo do HIV na satisfação plena dos desejos sem amarras, que são livres, mas restritos ao mesmo tempo pelo descaso social dos poderes públicos que por muito tempo tratou criminosamente a doença como uma condenação à população LGBTQIA+. Mas é a autonomia da vontade na amizade destas personagens que nos mostra a verdadeira força revolucionária em apenas se poder superar a indiferença com a força dos afetos, do amor e da compaixão para com o próximo (mesmo que seja uma pessoa desconhecida ou um colega de quarto no leito ao lado no hospital). O amor sempre vence no final.

Por fim, mas não menos importante, outra produção que foi pensada como minissérie, mas que já fez tanto sucesso desde que estreou no final do ano passado na HBO Max USA que já garantiu até uma segunda temporada, que é “The Flight Attendant” (traduzindo ao pé da letra, “Comissária de Bordo”). Liderada pela atriz Kaley Cuoco, mais conhecida como Penny de “The Big Bang Theory”, e comandada por Greg Berlanti (“Supergirl”, “The Flash”), é uma adaptação do livro de mesmo nome do autor Chris Bohjalian, publicado em 2018.

Tudo gira em torno de uma comissária de bordo, Cassandra Bowden (Kaley Cuoco), que será acusada de um assassinato que não cometeu, numa típica trama que a princípio aparenta girar em torno do mote ‘whodunit’ (quem matou?). Porém, as coisas não são o que aparentam, e muito menos a personagem seria construída em torno de um arquétipo de vítima inocente que apenas existe na trama para provar que não é culpada de algo tão absurdo quanto a premissa da série. Esta será apenas uma metáfora para descobrirmos relações abusivas em seu passado e um histórico de alcoolismo, que geralmente sublima a dor e culpa que ela carrega por outras coisas, coisas das quais não poderá mais fugir.

Tanto que Alex, o executivo milionário interpretado por Michiel Huisman (“Game of Thrones”), com quem Cassandra havia flertado no avião e saído apenas uma vez numa noitada de Bangkok, até acordar ao lado de seu corpo assassinado, continua na trama, mesmo morto, como parte de seu subconsciente, que dialoga sobre a investigação e sobre os traumas da vida dela. Um trauma dialogando com outros traumas para desvelá-los. Esse tratamento extremamente maduro das várias raízes da dor e do autoflagelo são explorados à excelência, tudo graças ao mérito de Cuoco, que demonstra um potencial muito maior do que apenas para fazer rir como na série pela qual ficou mais famosa, e esconde sobre risos e gesticulações um abismo muito maior do que qualquer palavra poderia descrever (geralmente ecoado no som de sua mente que o espectador sempre poderá ouvir, mas cujos ruídos só serão identificados nos últimos capítulos).

O grande diferencial da produção é a mistura de gêneros narrativos com uma precisão cirúrgica na fusão entre eles, mas sem jamais a linguagem dos respectivos gêneros, como suspense, comédia, espionagem e drama, ser colocada acima das necessidades da evolução da personagem principal, cujas camadas são tão densas que comportam e seguram a rápida transição do humor extremamente físico para a adrenalina e a introspecção melancólica.

Elegante, sofisticada e com altíssimo valor de produção, a estética pega emprestado de filmes de James Bond, aproveitando as várias viagens da comissária de bordo para usar locações ao redor do mundo, como a Tailândia e Roma, e une isso ao colorido de uma estética kitsch, bem Almodovariana, para abraçar de vez o absurdo e nos fazer acreditar na personagem como espinha dorsal dos delírios a transcorrer na tela. A gente acredita porque é estabelecido um potente laço de confiança com Cassandra, e ela está tão entorpecida em sua autodestruição que o que acontece do lado de fora de sua mente até se torna moleza perante as sanções que impomos a nós mesmos.

Uma obra que pode não ser centrada na linguagem LGBTQIA+, como as anteriores citadas, mas que ainda assim consegue ser ‘Queer Friendly’, com coadjuvantes mais representativos e que não estão lá apenas para sobrar na trama, pois acabam envolvidos pelo arcabouço principal e até rendendo algumas surpresas e reviravoltas em relação a isso. Uma grata surpresa que rende bem acima da média, mesmo usando e clichês para subverter a cada um deles conforme desfilam em nosso entretenimento televisivo com um sorriso no rosto e um bom aprendizado existencial ao final, algo tão necessário em período de pandemia como este. 

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.