Num dia de setembro em Nova York, poucos meses depois da prisão de seus camaradas Sacco e Vanzetti, um anarquista italiano chamado Mario Buda, estacionou sua carreta puxada por um cavalo, próximo da esquina de Wall Street, em frente da companhia J.P Morgan (...) Umas poucas quadras mais adiante um assustado carteiro encontrou uns panfletos que avisavam: ‘Liberdade para os prisioneiros políticos ou morrerão todos!’, assinados pela ‘American Anarquist Fighters’ (Lutadores Anarquistas dos Estados Unidos). Os sinos da Trinity Church começaram a soar ao meio-dia e, quando pararam, a carreta carregada de dinamite e pedaços de metal explodiu, convertendo-se em uma bola de fogo cheia de metralha(...) Buda não gostou de saber que J.P.Morgan não se encontrava entre os 40 mortos e mais de 200 feridos (...) estava longe na Escócia em seu pavilhão de caça. Ainda assim, o pobre imigrante, com alguma dinamite roubada, um montão de pedaços de metal e um velho cavalo havia provocado um terror sem precedentes no coração do capitalismo (...) O carro-bomba se converteu em uma arma semiestratégica comparável à força aérea pela sua capacidade de derrubar centros urbanos importantes e quartéis-generais. [1]
Mike Davis
As ideias não governam o destino do mundo, é o mundo que governa o destino das idéias. Interesses materiais condicionam as representações políticas nas sociedades contemporâneas. No entanto, esta fórmula, em geral correta, é, por si só, insuficiente.
Projetos radicais se transformam, também, em forças materiais, quando conquistam influência entre milhões, e passam a ser o combustível da transformação histórica. Sem a força de ideias poderosas não seria possível mudar o mundo. Por isso, devemos valorizar o debate de ideias.
Idealização da disposição de luta das grandes massas, análises catastrofistas sobre a crise final, previsão de cenários apocalípticas, desespero de iniciativas paralelas ou ações exemplares, voluntarismo substitucionista são um repertório clássico do ultra esquerdismo. Nunca deu certo.
O perigo das pressões “superrevolucionárias” contra a Frente Única de Esquerda no calor da campanha pelo Fora Bolsonaro aumentou, e podem ameaçar o seu desenvolvimento. A experiência histórica ensina que a fraseologia ultrarradical não é revolucionária. Revolucionários são o programa e as ações capazes de colocar as grandes massas em movimento para derrubar o governo.
Ideias e iniciativas que separam os setores avançados das massas não ajudam a acumulação de forças. Claro que qualquer organização tem o direito de fazer o que quiser. Mas a divisão, dispersão, proliferação de manifestações não favorecem a adesão espontânea das massas. A força concentrada estimula a confiança. A indisposição de aferir a correlação de forças leva a confundir o que é ainda um movimento que abre um caminho com a iminência da hora das batalhas decisivas.
A defesa de propostas que as massas não estão dispostas a fazer é ultimatismo. A política marxista não proclama, declara ou anuncia ultimatos aos trabalhadores e a juventude. Ela estabelece um diálogo. Apresenta um programa de ação que pode abrir o caminho para a vitória, e se apoia no aumento da confiança das massas em si mesmas.
Na etapa histórica aberta pela restauração capitalista, ideias de inspiração anarquista, com vocabulário autonomista voltaram a ter influência na juventude. A mais poderosa é a utopia de que seria possível mudar o mundo sem lutar pelo poder. Esta utopia é regressiva. É um retorno romantizado à infância ideológica do movimento dos trabalhadores na Europa do século XIX.
Derrotas históricas têm consequências sociais devastadoras, mas, também, teórico-políticas. A narrativa liberal que nivela as ditaduras burguesas com os regimes estalinistas de partido único passou a ser hegemônica, diminuindo a influência do projeto socialista. Trata-se de uma falsificação histórica grotesca. Mas exerce muita pressão sobre a nova geração sobre diferentes formas, às vezes, uma identidade “antifa” que se engaja em uma estratégia de “ação direta”.
No Brasil estamos assistindo a uma disputa política dos rumos da campanha pelo Fora Bolsonaro. Uma parcela da esquerda radical não tem acordo com a centralidade da luta pela Frente Única de Esquerda. A campanha Fora Bolsonaro assumiu a convocação dos Atos de 29 de maio, de 19 de junho e agora chama às ruas para o dia 3 de julho. Mas uma parcela da esquerda radical não aceita esta liderança e decidiu ter um protagonismo próprio, ainda que de forma, curiosamente, apócrifa.
A imensa fragmentação na esquerda revolucionária facilita esta dinâmica. Vitórias revolucionárias incendiam esperanças militantes, renovação teórica e unificações políticas. Derrotas alimentam nomadismos ecléticos de partidos, dispersão teórica do marxismo e diásporas sociais na intelectualidade. A linha divisória entre os dois grandes campos, reforma e revolução, não esgotou, no entanto, as identidades políticas na esquerda de inspiração marxista e base na classe trabalhadora.
O ultraesquerdismo procurou consistência em um programa. Caracteriza-se por uma perspectiva substitucionista: coloca para os trabalhadores e a juventude projetos, reivindicações ou ações que estes, em sua maioria, não identificam ainda como os seus, antecipando-se à experiência do grosso da classe.
Estão dispostos, às vezes, apoiados em setores mais radicalizados, a ações exemplares que amedrontem seus inimigos e incentivem seus aliados. Suas propostas estão além do que os batalhões majoritários da classe operária estariam dispostos a realizar, ou seja, políticas ultimatistas.
A influência das correntes ultras – marxistas ou anarquistas - tendeu a ser inversamente proporcional à sua real implantação nos meios populares. Foi minoritária, senão raquítica. Tem sua raiz em uma apreciação sobrevalorizada das relações de forças políticas e sociais.
As políticas ultras subestimam as forças reacionárias e os obstáculos à mobilização e organização dos trabalhadores. Mas, o seu afã voluntarista exige uma forte identidade e coesão interna. Os sectários desprezam a importância, em cada situação, da política que pode, efetivamente, colocar em movimento as amplas massas, secundarizando o terreno da Frente Única. Sobre-estimam a sua influência, e subestimaram a dos outros.
Existiram três formas clássicas de táticas ultras:
(a) manifestou-se como uma conclamação de ações que as massas não estavam dispostas a realizar como, por exemplo, boicotes de eleições; ocupações de fábricas e prédios públicos; manutenção de greves “custe o que custar”; ou o mais comum e indefectível chamado à greve geral;
(b) traduziu-se na forma de palavras de ordem radicais, como a clássica discussão sobre índices de aumento de salários - 10% ou 50%? - ou então a polêmica, também recorrente, sobre os valores dos salários mínimos e pisos salariais;
(c) Assumiu a forma de um ultimatismo de organização: abandonar os espaços de Frente Única com direções moderadas, por que a sua direção seria “pelega”, não importando se a maioria do movimento reconhecia ou não a direção.
Ultraesquerdismo ou sectarismo, assim como oportunismo, são avaliações que se atribuem a orientações e práticas políticas. São críticas e não devem ser compreendidos como insultos. O ultraesquerdismo pode ser definido, portanto, como uma estratégia política ou até uma doutrina.
[1] DAVIS Mike, Coches-bombas, Las fuerzas aéreas de los pobres, in http:// www.zmag.org/Spanish/, 2006.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.