“O capitalista considera a existência de uma classe trabalhadora dotada de habilidade entre as condições de produção que lhe pertencem; vê nela a existência real de seu capital variável”.[1]
Na sociedade burguesa, o professor ocupa um lugar de extrema importância, pois forma a mais importante das mercadorias que entrará em circulação: o trabalhador. É a formação da classe trabalhadora que determinará o seu valor de mercado.
O ministro da Educação queria conferir a prova do Enem para se certificar que o seu conteúdo fosse 100% técnico. Isso pode ser considerado um problema. No entanto, o Enem já é um sistema de avaliação técnica.
Bourdieu e Jean Claude Passeron tratam da ação pedagógica dominante, um arbitrário cultural que é inculcado pela autoridade pedagógica (o professor) que tem como objetivo impor a cultura dominante ao aluno. Ele precisa saber o que é realmente necessário para passar nos exames que vão atribuir a este indivíduo um valor maior no mercado.
Em uma formação cultural existem diversas ações pedagógicas: a da família, a da rua, da indústria cultural, entre outras, mas todas estas devem reconhecer que existe uma dominante, que somente um tipo de conhecimento é realmente necessário para “mudar de vida".
Essas culturas dominadas “chamadas à ordem tendem a produzir em si mesmas, aliás, senão a declaração explícita de cultura dominante como cultura legítima, pelo menos a consciência larvada da indignidade de seus conhecimentos”.[2]
O arbitrário cultural dominante será passado por uma instituição legítima e por uma autoridade pedagógica legítima. O objetivo é mostrar que o acervo cultural que se localiza fora desse arbitrário cultural, não possui valor nenhum, é inútil para o progresso do indivíduo. Não servirá para passar no vestibular, num exame para seguir a carreira militar, ou para se tornar juiz.
Deste modo, a ação pedagógica dominante visa a alienar o estudante de seu meio, criar nele o sentimento de rejeição ou no mínimo de desimportância para com a cultura que adquiriu por meio dos seus pares.
Bourdieu e Passeron chamam isto de violência simbólica. Esta não é o mero fato de agir preconceituosamente com a carga cultural de alguém. Mas convencer este alguém de que sua cultura não serve para chegar na posição ideal determinada e valorizada pela formação social. O dominado, portanto, não irá enxergar preconceito na situação, mas uma lógica, um procedimento racional e entenderá que os dizeres, histórias e saberes práticos que possui de extrema importância para o seu meio social, na verdade, são inúteis para se alcançar o sonho que a ação pedagógica dominante inculca com frequência em sua cabeça: “ser bem sucedido na vida".
Só se trata de uma violência simbólica na medida em que não revela que o objetivo de tudo isso é o “desconhecimento da verdade objetiva da cultura legítima como arbitrário cultural dominante”.[3] Tanto os professores quanto os alunos devem reconhecer todo o processo como algo lógico, racional e realizador.
A dominação burguesa se dá no momento em que não reconhecemos a cultura dominante como cultura, mas como conhecimento técnico, neutro, ou como muitos preferem, científico. O conhecimento que adquirimos na escola é visto como neutro e científico, já os conhecimentos oriundos das experiências africanas, indígenas e das classes populares são vistos como cultura africana, cultura indígena e cultura popular. É deste modo que o trabalho pedagógico consegue “impor aos membros dos grupos e classes dominados o reconhecimento da legitimidade da cultura dominante" e “do mesmo modo, pela inculcação ou exclusão”, aos grupos e classes dominados, “o reconhecimento da ilegitimidade de seu arbitrário cultural”.[4]
Portanto, o Enem, como outros exames, é arbitrário porque tem a pretensão de ser universal. Como uma formação social é naturalmente geradora de várias culturas, sempre haverá um processo de seleção e, consequentemente, exclusão. Esta seleção é feita pensando nos elementos culturais que permitem o funcionamento do sistema. E, ao negar as outras culturas, outras ações pedagógicas, que fornecem habilidades inúteis para o sistema, nega-se também as condições sociais que as produziram.
De acordo com Karl Marx, o trabalhador é alienado em dois processos: na sua relação com os produtos do trabalho e na atividade produtiva.
A natureza fornece os mesmos meios de existência para o trabalho e para a existência física do trabalhador. Contudo, a “economia política oculta a alienação na característica do trabalho enquanto não analisa a imediata relação entre o trabalhador (trabalho) e a produção”. Porque “quanto mais o trabalhador se apodera pelo trabalho do mundo exterior, da característica sensível, mais se priva dos meios de existência”. Em vez de consumir para si os meios que a natureza lhe fornece, ele tem que transformá-los em mercadorias, deixar de tê-los para vendê-los e, a partir daí, ter um mínimo de dinheiro para viver. Sendo assim, “quanto mais o trabalhador produz, menos tem de consumir"; “quanto mais magnífico e pleno de inteligência é o trabalho, mais o trabalhador diminui em inteligência e se torna escravo da natureza"; “produz inteligência, mas também produz estupidez e a cretinice para os trabalhadores".[5]
O trabalhador deixa de ter para produzir para outros. Este processo é muito mais grave no professor. Quanto mais forma alunos pela cultura dominante, prontos para competir no mercado de trabalho e perpetuar a glória do capital, mas se priva do conhecimento crítico. Primeiro porque não faz uso de tal conhecimento em sua atividade, não o insere no produto que produz. Segundo porque o trabalhador, ou seja, o cidadão-consumidor, entenderá esse tipo de conhecimento como inútil e desnecessário para avançar em sua carreira profissional. A reprodução do conhecimento crítico é, assim, interditada.
Mas a questão mais violenta se encontra no outro processo de alienação, o que se dá na atividade produtiva. O professor está convencido que seu trabalho é formar alguém que seja versátil no mercado de trabalho. Quando um ex-aluno se torna um homem ou mulher bem sucedido, ele sente uma emoção inenarrável, um sentimento de dever cumprido.
No entanto, “a exterioridade do trabalho para o trabalhador transparece no fato de que ele não é o seu trabalho, mas o de outro, no fato de que não lhe pertence, de que no trabalho ele não pertence a si mesmo, mas a outro".[6] O trabalho do professor não pertence a ele, mas a ação pedagógica dominante, ao arbitrário cultural que aniquila todos os outros em prol de uma cultura dominante, útil para o sistema funcionar. Pertence ao capitalista que quer pagar por “uma classe trabalhadora dotada de habilidade entre as condições de produção que lhe pertencem”, como na citação de Marx que deu início a este artigo.
O trabalho do professor foi imposto a ele. Nega o que aprendeu para ensinar o que é “necessário” para o indivíduo se tornar alguém no qual um empreendedor estará interessado em investir seu capital variável. O trabalho do professor, como de qualquer outro trabalhador, “não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado”.
Para o caso do professor, Bourdieu e Jean Claude Passeron irão dizer sobre “a impossibilidade para essa instância de definir livremente o modo de imposição, o conteúdo imposto e o público ao qual ela o impõe”.[7] Repetindo, de certa forma, o que Marx havia dito para o trabalhador de um modo geral.
Mas enquanto o trabalho produz mercadorias e o trabalhador como uma mercadoria, o professor, mais ou menos consciente deste processo, é o único trabalhador que produz trabalhador. O docente, assim como os outros trabalhadores, produz a si mesmo como mercadoria, mas também produz outros seres-mercadorias, forma capital humano. O capitalismo reduz o professor à condição semelhante à de cafetão e traficante de escravos, pois transforma seres humanos em produtos para serem comprados no mercado.
Para alterarmos esta condição precisamos entender que não é a educação que transforma o mundo. Primeiro, é preciso mudar o mundo para se transformar a educação. Para que o objetivo da escola seja o pleno desenvolvimento da pessoa humana e sua inserção crítica no mundo do trabalho, é preciso pensar que ela não é uma instituição isolada do mundo. Na escola, a criança não está protegida do mundo, pelo contrário, está nele inserida.
Deste modo, para termos uma mudança na educação precisamos “eliminar a pobreza mediante uma maior paridade de renda, criar programas eficientes e muito mais igualitários de saúde e moradia e recusar claramente a continuar mantendo as políticas ocultas e outras nem tão ocultas assim de exclusão social e de degradação que tão evidentemente ainda caracterizam a vida diária”. Se as discussões da pedagogia crítica não se basearem “no reconhecimento dessas realidades, também acabarão caindo na armadilha de supor que as escolas podem resolver esses problemas sozinhas".[8]
Uma educação melhor precisa de um mundo melhor, uma educação que forme cidadãos críticos precisa de um mundo que não faça das pessoas objetos, engrenagens para o funcionamento do sistema. É preciso a queda de uma lógica que prioriza a formação instrumental dos seres humanos em detrimento da sua humanização. Enquanto isto não acontecer, o professor, independente de sua didática, à semelhança do cafetão e do traficante de escravos, continuará transformando (de forma legal e oficial) pessoas em mercadorias.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
[1] MARX, K. O Capital. Livro 1 vol 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 669
[2] BOURDIEU, P. e PASSERON, J-C. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 3 ed. Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1992, p. 41.
[3] BOURDIEU, P. e PASSERON, J-C., p. 43.
[4] Id, p. 52.
[5] MARX, K. Manuscritos econômicos-filosóficos, São Paulo, Martin Claret, 2005, p.113.
[6] Id., p. 114.
[7] BOURDIEU, P. e PASSERON, J-C., p. 40.
[8] APPLE, M. Educação à direita. São Paulo: Cortez, 2003, p. 101.