Mesmo que estejamos perto do dia dos namorados, à luz de 12 de junho, sabemos bem que datas comerciais não necessariamente significam o real sentimento por trás de suas representações mercadológicas e de consumo... Até porque, após mais de um ano com distanciamento social e home office devido à pandemia, os casais não agüentam mais ter de olhar um para o outro confinados em suas próprias casas, sem viajar ou festejar com as amizades, ou mesmo sem o poder do acaso e dos esbarrões do cotidiano, o que fazia o reencontro com a sua companhia de vida se tornar ainda mais especial no fim do dia.
Imagina, então, para os casais que possuem filhos morando em casa junto com eles? Ainda mais crianças pequenas, que costumam ser hiper ativas e não se contentam com pouco para gastar toda aquela energia. Por isso mesmo nada mais justo do que abordar aqui filmes facilmente encontrados na Netflix, recomendados pra toda a família, e que dialogam muito com as vicissitudes parentais metaforizadas pelo mundo apocalíptico na atual pandemia.
Vamos começar por este lançamento tardio do muito adiado “A Mulher na Janela” (2021), suspense que se pretende uma homenagem à Hitchcock e dirigido por Joe Wright, cineasta mais acostumado com romances de época protagonizados por Keira Knightley, como um dos filmes favoritos de vida deste que vos escreve, “Desejo e Reparação” (2007), e outros do naipe de “Orgulho e Preconceito” (2005), “Anna Karenina” (2012).
Se aqui não temos sua atriz-assinatura, Keira, passamos o bastão de protagonismo para outra artista muito idolatrada pelos cinéfilos, Amy Adams (de “A Chegada”, 2016). Ela interpreta a mãe de família que está passando por um trauma de separação, sem maiores explicações, pois o fato de ela sempre dizer que o marido ficou com a guarda da filha deles faz parte da trama que irá se desenrolar. Enquanto isso, passando por sintomas de agorafobia, sua maior válvula de escape é espionar os vizinhos, até o dia em que acredita ter presenciado um assassinato!
Não é à toa que a premissa pode soar muito similar ao clássico do mestre do suspense “Janela Indiscreta” (1954), com uma pessoa adoentada no confinamento de sua própria casa, e cujo único alívio é espionar a vida alheia pela janela, até que acredita ter visto um crime acontecer sem ninguém acreditar em sua palavra... Porém, as semelhanças não param por aí. Afinal, há muitos Hitchcocks assumidamente presentes nesta adaptação do livro homônimo de A. J. Finn, cujas citações visuais ampliam o que já estava no livro para além da estrutura básica...
A diferença do livro para o filme é que a obra em audiovisual exagera a estética emprestada do saudoso mestre e, para além das menções confessas e explícitas, tenta forçar a inserção de muitas outras mais: seja de filmes que são exibidos na telinha da protagonista, e que ela assiste durante toda a madrugada; ou mesmo até em cacoetes estranhíssimos, que vão do jogo de luzes psicodélicas de Hitchcock em momentos oníricos de pesadelo ou dúvida da própria sanidade ou mesmo enquadramentos de sangue jorrando na tela, como a cena do ralo do chuveiro de “Psicose” (1960).
A grande questão aqui é quando as referências viram clichês, e de forma nada lisonjeira. Talvez por falta de experiência do diretor Joe Wright dentro do gênero suspense e horror psicológico, completamente fora de sua praia aqui. E nem seria pelo fato de que não pudesse errar mesmo em seu próprio campo de especialidade, com os filmes de época ou biografias históricas, já que “O Destino de Uma Nação” (2017) pode ter levado até o Oscar de maquiagem e melhor ator para Gary Oldman interpretando Winston Churchill, porém este crítico considera um de seus filmes mais fracos e maniqueístas.
A questão é que este projeto deveria conseguir se sustentar por seus próprios pés, sem precisar calçar os sapatos de outrem. Afinal, é capitaneado por ninguém mais, ninguém menos do que a inspirada atriz Amy Adams, que costuma render sempre pra além da encomenda. Isso sem falar num elenco de suporte extremamente gabaritado a convite de Wright, incluindo trazer de volta seu ator oscarizado Gary Oldman, e inúmeras mulheres poderosas, como a aqui subaproveitada Jennifer Jason Leigh e uma participação especial quase sumida de Julianne Moore. – Vale lembrar que a própria esteve na refilmagem de “Psicose” de Gus Van Sant em 1998, então não sendo estranha a homenagear Hhitchcock, mesmo que noutro filme tão equivocado.
A questão é que o clima de paranóia delirante e vertigem psicológica no qual a personagem de Amy Adams se coloca funciona melhor no livro do que na mise-en-scène rocambolesca do filme, seja pela bebida e remédios para dormir e para depressão, representados como um devaneio no enorme apartamento da personagem, seja pela agorafobia que a mesma desenvolveu após um evento traumático... Tudo faz com que a câmera, os cortes e a montagem não sejam confiáveis, propositalmente, mas cuja previsibilidade se esvai com os códigos copiados de Hitchcock, que extravasa a superfície e vira muleta.
Muitas obras poderão ser reconhecidas, desde o sonho psicodélico de “Vertigo – Um Corpo que Cai” (1958), além da troca de personagens no meio da trama (no filme do mestre, Kim Novak interpretava as duas mulheres platinadas investigadas por James Stewart, confundindo-o sobre quem era quem..., enquanto aqui duas atrizes platinadas diferentes aparentemente interpretam a mesma pessoa, o que pode ser desmistificado no final da trama). Sem falar em citações mis, como “A Dama Oculta” (1938) e “Disque M para Matar” (1954). Mas nada disso é centralizado num reaproveitamento à altura da citação, ficando como referências soltas e sem potencializar a pretensão de seu uso para algo novo para além da superação do trauma da perda de uma triste mãe em luto e em auto-confinamento social.
Enquanto isso, outro filme que aborda também a narrativa a partir do olhar das mães, inclusive metaforizando a contemporaneidade apocalíptica é a estréia fresquinha de “Awake” de Mark Raso (2021), e cujo tema central é mais um fator de fácil identificação com o público em tempos de pandemia, no caso, a falta de sono. Se desde a Era Medieval a privação de sono foi usada como uma das piores torturas existentes, agora veremos explorar aos extremos quais são as conseqüências no corpo humano sem repouso, em aceleração constante até quebrar ou enlouquecer...
Na premissa do filme, a família da protagonista interpretada pela porto-riquenha Gina Rodriguez (“Jane The Virgin”, 2014) se vê no meio de um desastre global que pára todas as máquinas e eletrônicos do planeta, fazendo ao mesmo tempo com que os seres humanos não consigam mais se “desligar”. Ou seja, estariam fadados a ficar acordados até seu corpo colapsar. Porém, uma das únicas pessoas imunes a esta tal sina é justamente a filha de Gina, pois continua a conseguir dormir mesmo contra todas as adversidades. E isso vira comodity muito desejado por todas as tribos possíveis, da Igreja ao Exército.
Evidente que numa história distópica com figuras míticas girando em torno de núcleos familiares é evidente que uma hora ou outra as metáforas visuais adotariam analogias messiânicas, como toda jornada do herói. E as associações bíblicas ou mesmo divinas com o acaso da última pessoa a ter a capacidade de dormir na Terra acabariam forçando um maniqueísmo desnecessário.
É válido dar um desconto de que a garota pivô de toda a celeuma é interpretada pela ótima Ariana Greenblatt, uma revelação que já havia brilhado mais intensamente no subestimado “Amor e Monstros” (2020), também disponível na Netflix. Mas o fato de o elenco ser majoritariamente composto por latinos de fato traz uma representatividade insuspeita para todas as crenças e religiosidades talvez um pouco exacerbadas. Isso porque a representação latina nos EUA sempre valorizou muito suas origens religiosas de fé e, nisto, não podemos dizer que o filme não faça jus à encomenda...
O que se torna o principal calcanhar de Aquiles da obra nem é isso, apesar de ser divertido ver a atualização do arquétipo de “mãe coragem” disposta a tudo pela família, numa liderança feminina em filmes com cenas de ação e suspense geralmente reservados de forma excludente a somente protagonistas masculinos. A maior questão é que mesmo diante da suspensão total da realidade nos deslocamentos mais estapafúrdios da trama é que o filme deixa de desenvolver de fato suas personagens para elas virarem marionetes dos acidentes de percurso...
Mesmo a boa relação construída entre mãe e filha (esquecendo-se completamente do irmão desta) vai se esvaziando pela vontade descabida de ceder a reviravoltas escalafobéticas. O próprio diretor fica indeciso se é um filme-catástrofe, ou ficção-científica, ou mesmo terror... E no meio de tudo isso, vai exigindo cada vez mais do espectador sem dar em troca. Até a antagonista interpretada pela mais uma vez subaproveitada Jennifer Jason Leigh não chega a ser uma vilã, apenas alguém com crenças opostas, mas que também não ganha contornos tridimensionais suficientes para que nos envolva e nos faça torcer a favor ou contra. Passa a ser tudo indiferente perante o grande Deus Ex Machina messiânico que a tudo irá resolver de forma risível, simplesmente pela força da fé, e não a do cinema.
Por fim, mas não menos importante, dos três lançamentos mais recentes da Netflix envolvendo relações familiares e uma personagem materna forte em cena, o melhor deles definitivamente foi “A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas” (2021) de Michael Rianda e codirigido por Jeff Rowe (um dos roteiristas da série “(Des)Encanto” também na Netflix).
Num belo empenho da Sony Pictures Imageworks, na contracorrente das fábulas da Disney/Pixar, eis que surge mais um filme focado nas relações familiares aproximadas da realidade, mas sempre com um toque de paródia ou distopia que permitirão a visão crítica de nós mesmos. Se a Sony já havia acertado e muitíssimo bem na recente animação “Homem-Aranha no Aranhaverso” (2018), que vertia pros traços do desenho a textura da paginação dos quadrinhos que adaptava, agora vemos mais uma empreitada criativa com a história da família Mitchell. Desde os contornos cartunescos em tom de paródia da realidade, ao uso de artifícios ultra modernos como memes, filtros de instagram, montagens e colagens típicas das redes sociais e aqui fundidas na linguagem cinematográfica.
Tudo isso dá muita liberdade visual para os artistas criarem, mas ao mesmo tempo dá uma impressão positivamente ilusória de que nós espectadores também podemos fazer parte da interação disposta na tela. Como se pudéssemos escolher o filtro ou qual meme combina mais com tal situação. E a explicação diegética disso está na própria protagonista, a jovem Katie (na voz de Abbi Jacobson), que sonha encontrar a sua própria tribo e fazer cinema como vocação de vida – e cinema usado aqui de forma metalingüística tanto no conteúdo da história quanto na forma com que é contada, pois o fato de ela fazer cinema vai mudando os próprios caminhos do filme.
Nós espectadores sentimos como se pudéssemos estar com a câmera de Katie na mão criando conteúdos, ou mesmo com os aplicativos que remontam cada cena a bel prazer com a palma de nossas mãos. E o melhor de tudo isso é que mesmo o uso desenfreado das tecnologias também não passa impune, pois, apesar de ser o mesmo motivo pelo qual estamos elogiando tanto o formato da estrutura com que a história é contada, ao mesmo tempo é a principal crítica do subtítulo do filme: “A Revolta das Máquinas”.
Na trama, a inteligência artificial denominada de PAL (voz da oscarizada Olivia Colman) se sente rejeitada por seu criador quando ele inventa um novo dispositivo de dominação mundial de sua empresa, ao mesmo tempo em que PAL, pra provar que não está obsoleta, toma o controle de todos os eletrônicos do mundo e aprisiona a raça humana, sobrando apenas a improvável família Mitchell como únicos heróis possíveis pra salvar o mundo. Não à toa, suas maiores falhas e vícios serão justamente a chave para tentar superar os desafios pela frente e unir de novo os membros da família que já estava partida pra começo de conversa. É bastante impressionante que o filme não negue em nenhum momento o quão despreparados e desunidos eles estavam antes de cair nesta pantomima, e mesmo depois também, fazendo com que não seja negar os próprios defeitos que fará com que triunfem, e sim assumi-los e saber usá-los a seu favor.
E por mais que a personagem da mãe-coragem (na voz de Maya Rudolph) aqui não seja a real protagonista, e sim sua filha Katie e seu relacionamento disfuncional com o pai (na voz de Danny McBride), ainda assim a narrativa distribui de forma razoavelmente justa os momentos climáticos entre todos os membros da família, e até possui um desenvolvimento interessante para a figura maternal costumeiramente apaziguadora. Uma frase dita no início da projeção, quando ela exige que o marido resolva seus problemas com a filha senão ele vai ter problemas é com sua esposa (e a palavra divórcio fica bastante subentendida ali de forma bastante madura, mesmo num desenho voltado mais para a juventude), é só mais uma demonstração de maturidade emocional que até poderia ser mais desenvolvida durante a trama, mas que volta no final para ao menos não deixar pontas soltas.
Para quem quiser saber mais sobre “A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas”, clique aqui para conferir a gravação do debate que rolou ao vivo na Academia Internacional de Cinema esta semana com mediação deste que vos escreve, além de presença do professor de animação e storyboard Guto Bicalho, do professor de videogames Guilherme Xavier, e da correspondente da AIC Bruna Barbosa (membro da APAN e DAFB). E se quiser saber mais sobre outros lançamentos de filmes na semana, acompanhe o meu podcast com a Reserva Imovision clicando aqui.
Então, se quiserem passar um bom dia dos namorados, primeiro olhem com respeito e reverência para a relação de seus pais e não esqueçam de lhes dar o devido reconhecimento, além de não esquecerem também de cuidar direitinho de seus próprios filhos, caso os tenham, antes de enfim prestigiar a incrível mãe que sua companheira provavelmente deva ter ou ser.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.