Por Giovana Dias Branco e Danielle Makio**
Há alguns dias o Brasil vem acompanhando a repercussão do embate entre Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e Rússia acerca da liberação da vacina Sputnik V, impasse que se dá em um cenário no qual 14 estados brasileiros já solicitaram a importação imediata do imunizante. A agência brasileira declarou que o Instituto Gamaleya, responsável pelo desenvolvimento da vacina russa, não teria liberado documentação suficiente para seu uso em esfera nacional. A alegação é justificada, sobretudo, pela ausência de estudos da fase 3, responsável pela confirmação da eficácia da vacina.
Entretanto, é preciso ressaltar que, apesar da cautela da Anvisa, o uso emergencial da Sputnik V já foi autorizado em 61 países, incluindo Argentina e Índia. Ademais, foram publicados resultados no periódico The Lancet que alegam eficácia de 91,6% e minimização de 100% de casos moderados e graves. Conforme demonstra o estudo, o uso do imunizante parece de fato impedir o desenvolvimento de formas mais graves da doença. Mesmo assim, o governo brasileiro ainda não pode aplicar a vacina na população, o que torna inutilizáveis milhares de doses já compradas.
No último dia 26, foi convocada uma reunião extraordinária para a exposição das avaliações realizadas pela agência. O gerente-geral de medicamentos e produtos biológicos, Gustavo Mendes, não recomendou o uso do imunizante russo por alegar que não há como se certificar sobre o seu modo de atuação, e que a publicação de um artigo em revista científica não assegura que o produto passe por todos os critérios estipulados pela Agência. Segundo declarado pela Anvisa, em virtude da presença de um vetor viral replicante na vacina russa, há dúvidas sobre a eficácia e os possíveis efeitos colaterais da mesma.
Em resposta à negação do uso emergencial da Sputnik V no Brasil, o Fundo de Investimento Direto da Rússia e o Instituto Gamaleya acusaram a Anvisa de compartilhar informações falsas sobre o imunizante. Além disso, Kirill Dmitriev, CEO do fundo de investimentos russo responsável pelo imunizante, acusou a Anvisa de ter negado o uso da Sputnik V no Brasil devido a influências norte-americanas.
Aprofundamento das assimetrias norte-sul
O debate em torno da Sputnik V no Brasil se dá em um contexto mais amplo no qualvem se desenhando uma corrida científica entre as grandes potências. Desde o início da pandemia, laboratórios de diversos países têm voltado esforços ao combate do vírus ao passo em que também disputam a liderança na comercialização de seus imunizantes. Nessa corrida, a Rússia saiu em primeiro lugar, registrando a primeira vacina contra o Covid-19 em agosto de 2020. O próprio nome dado ao imunizante, Sputnik V, faz referência ao primeiro satélite espacial lançado pela URSS em 1957, tornando inevitável a comparação da atual corrida científica por imunizantes com a antiga corrida espacial entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria.
Apesar de 61 países terem liberado o uso emergencial da Sputnik V, fato que poderia ser encarado como um aparente precedente para a aprovação brasileira do imunizante, é preciso analisar quais as principais características desse grupo e, ademais, avaliar se elas condizem com a realidade do Brasil. Os países em questão estão predominantemente localizados na África, na América Latina, no Leste Europeu e no Oriente Médio, o que demonstra uma expressiva entrada do imunizante russo no Sul Global. Em contrapartida, o uso das vacinas da Pfizer e de Oxford é mais restrito ao Norte Global. A Sputnik V, neste contexto, não foi aprovada por importantes órgãos sanitários, como a EMA (Agência Europeia de Medicamentos) e o FDA (Food and Drug Administration), agência norte-americana.
Como são poucos os países produzindo suas próprias vacinas, e estando a maior parte do mundo ocidental desenvolvido mais preocupada com seus próprios programas de imunização, o Sul Global recebeu atenção insuficiente no que tange ao acesso aos lotes de vacinas, que não estão distribuídos de forma justa ou equitativa entre o globo. Todavia, ainda que a solução pareça de difícil acesso, o problema persiste e é dividido por todos, fato que reitera a necessidade da imunização global, uma vez que os níveis de contaminação só serão controlados de fato se todo o mundo, e não apenas o norte global, puder vacinar sua população em massa. Nesse cenário de intensa dependência sanitária, alguns países têm se mostrado cada vez mais abertos ou vulneráveis às investidas diplomáticas de Rússia e China, que perceberam a alta demanda por imunizantes por parte daqueles que não foram priorizados pelos produtores europeus e norte-americanos.
Tendo em vista o público alvo da Sputnik V no mercado internacional, é possível vislumbrar uma nova diplomacia russa pautada na comercialização da vacina, que certamente tem melhorado a imagem de Moscou perante os demais Estados. Em meio às sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos, e tendo em vista a recente escalada de tensões na fronteira com a Ucrânia, a Federação Russa vem buscando possíveis alianças em meio aos compradores de seu imunizante. Enquanto os países do Sul Global se viram à mercê de uma lógica mercadológica mais afeita às grandes potências, a oferta da vacina russa se sobressai como uma alternativa viável àqueles que foram deixados de lado pelos países mais desenvolvidos.
Entretanto, a aprovação da Sputnik V por este que representa um considerável grupo de Estados não impede que o Brasil recuse a utilização do imunizante, uma vez que cada país utiliza métodos próprios de estudos e análises sanitárias. Ademais, como ressaltado por representantes da Anvisa, é preciso ter cautela na análise desses medicamentos, avaliando sempre a questão risco-benefício de cada produto. Nesse momento tão delicado, é dever da agência realizar procedimentos rigorosos para garantir a saúde da população brasileira em meio à pandemia. Portanto, a liberação de imunizantes sem toda a documentação necessária para a compreensão de seu modo de atuação e possíveis efeitos colaterais iria de encontro ao objetivo maior. É impossível negar, por outro lado, que com a falta de agilidade do governo brasileiro em negociar lotes de vacina com os demais produtores, a aprovação do uso de dezenas de milhares de doses da Sputnik V poderia melhorar o atual cenário de imunização nacional.
Uma nova geopolítica pós-vacina
As declarações de Sergei Lavrov, chanceler russo, acerca da pressão estadunidense contra o uso da Sputnik V se dá em meio ao aumento das tensões entre Rússia e Estados Unidos. Buscando recuperar a influência americana na seara internacional, de certa forma ameaçada pela política externa desempenhada por Trump, Biden vem asseverando o tom no trato com a Rússia, a qual, junto da China, forma uma importante coalizão que coloca em xeque a hegemonia da Casa Branca. Nesse contexto, impor limitações à disseminação da Sputnik V pode ser encarado como uma forma dos Estados Unidos frearem um possível aprofundamento das relações entre a Rússia e demais países. À medida em que o imunizante russo vem sendo entendido como uma saída às desigualdades impostas pelas dinâmicas de comercialização das alternativas ocidentais, a vacina de Moscou torna-se, de certa maneira, a porta de entrada para uma ressignificação da Rússia como parceira internacional. A construção de uma imagem mais amigável, quiçá benéfica, do Kremlin perante nações do Sul Global se daria, assim, em detrimento do apelo estadunidense perante esses países, minando a capacidade de influência de Washington.
Dessa forma, as negociações de imunizantes entre Moscou e o Sul Global desenham um novo cenário que pode ser mantido mesmo após a pandemia, com a formação de novas alianças políticas e parcerias comerciais que não envolvam a participação de Washington. A recusa da Sputnik V pela Anvisa, assim, pode apontar para um certo distanciamento do Brasil dessa ordem. A Rússia, por outro lado, aumenta sua atuação global sem se utilizar de seus aparatos de hard power, reforçando uma imagem internacional que difere daquela propagada, sobretudo pelo Ocidente, com base no envolvimento militar de Moscou no Leste Europeu e no Oriente Médio. Portanto, observa-se uma nova diplomacia fabricada por Moscou, para a qual ainda não é possível determinar os efeitos a longo prazo. De todo modo, o governo Putin tem se mostrado hábil nas negociações internacionais, reforçando sua presença em contextos nos quais era outrora obstruído pela atuação dos Estados Unidos e do bloco europeu.
*Giovana Dias Branco é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC) e do Observatório de Conflitos do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).
*Danielle Makio é mestranda em Relações Internacionais no Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e no International Master in Central and East European, Russian and Eurasian Studies (Universidade de Glasgow) e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC), do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) e do Observatório de Conflitos do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.