O professor da UFRJ Roberto Leher critica o retorno às aulas presenciais no município do Rio de Janeiro sem um investimento estrutural nas escolas. A visão que Eduardo Paes tem sobre a educação é severamente criticada pelo ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro: “Embriagado de irracionalismo, o prefeito associa botequins, restaurantes e escolas: se o botequim está aberto, por que não as escolas?”[1]
É uma comparação, de fato, absurda, mas está ligada a maneira pela qual a vertente neoliberal das classes dominantes enxerga a educação. “Na verdade", explica Michael Apple, “a educação é vista apenas como mais um produto, como pão, carros e televisão”.[2]
Essa “educação-mercadoria” é vendida para consumidores, que, perante o capital, são padronizados, “destituídos de raça, classe e de gênero”. Mas assim como existem indivíduos que podem ter acesso a um restaurante caro, ou um botequim sofisticado, há outros que só podem jantar nas barraquinhas de cachorro quente espalhadas pelas ruas da cidade e nos botequins “pé sujos", como são conhecidos no Rio de Janeiro.
Os neoliberais enxergam o mundo como um imenso supermercado. A educação é vendida com qualidade e valores dependendo das condições econômicas dos consumidores.
As escolas são antros que reproduzem a lógica mercadológica, de modo que reinam projetos de “aprender para trabalhar” e de “ensino profissionalizante”.[3] Essa educação, portanto, adota um modelo empresarial, no qual a pressão para se atingir metas e prazos é constante, assim como os ideais de eficiência e custo-benefício.
O secretário de Educação, Renan Ferreirinha, faz parte da chamada “bancada Lemann” e visa pôr em prática essa educação de mercado no município do Rio de Janeiro. Ele mesmo se põe como um militante da educação e do ensino técnico profissionalizante.[4]
Tanto as escolas privadas quanto as públicas devem atender aos interesses do capital, as primeiras formando os grupos dominantes e as segundas a mão de obra barata que irá competir por uma vaga no mercado. É a velha escola dual que os gramiscianos combatem veementemente.
As duas, portanto, a sua maneira, devem ser eficientes. A educação destinada aos estudantes privilegiados fornece um capital cultural relacionado ao mundo sociocultural reconhecido por eles. Porém, na outra ponta, a educação oferecida aos filhos da classe trabalhadora tem como objetivo alienar o estudante do seu meio cultural, tachando este como inútil. Trata-se de um assassinato cultural.
O saber que o aluno da classe operária recebe na escola não procura criticar ou promover uma reflexão sobre os saberes compartilhados entre ele e seu grupo, mas rejeitá-los, substitui-los pelo “saber verdadeiro” o que promete ascensão social, emprego ou êxito em provas. Para este aluno ser bem sucedido ele precisa negar a sua realidade, alienar-se de si, tornar-se um ser para os outros. Um carma da história da educação que precisa ser mudado, pois se, como mostra Georges Snyders, as crianças no século XVII aprendiam a ser submissas a Deus e a “trabalhar com espírito de penitência”[5], hoje, podemos dizer, que elas aprendem a ser submissas ao capital e a trabalhar com espírito de resiliência.
É como explica Pierre Bourdieu, “o fato é que a tradição pedagógica só se dirige, por trás das ideias inquestionáveis de igualdade e de universalidade, aos educandos que estão no caso particular de deter uma herança cultural, de acordo com as exigências culturais da escola".[6] Deste modo, os que possuem uma herança cultural conectada ao tipo de conhecimento exigido pela escola, irá se dar melhor nas provas e exames que os desfavorecidos, que, por sua vez, detém um saber cultural desprezado pelo “verdadeiro saber".
Este é um dos motivos para que, em qualquer lugar que prevaleça este modelo, muitos adolescentes veem a escola como um lugar ruim, “esperando que ela termine ao fim de cada dia, ao fim de cada ano, ao fim da juventude – na expectativa (e conformando-se com isso) de que ela os prepare para aquele famoso futuro cheio de promessas e ameaças”.[7]
Esse “saber" precisa ser passado para que seja possível formar uma mão de obra eficiente e assim reproduzir a lógica social que mantém todo o processo desigual, excluindo aqueles que não “aprendem" o “verdadeiro saber". Portanto, a pandemia não pode ser um óbice. Logo, se podemos manter o funcionamento da economia, podemos manter o funcionamento das escolas. Se bares e restaurantes estão abertos, por que não abrir as escolas?
Além de ser um assassino cultural, este modelo de educação, pautado na eficiência mercadológica, com a pandemia, tornou-se, também, um assassino no seu sentido clássico, isto é, exterminador de vidas humanas.
O SEPE-RJ vem liderando a greve pela vida e fez um levantamento que detectou irregularidades em 119 escolas da rede municipal de educação. Há escolas, segundo informações do SEPE, destelhadas, outras com piso quebrado e com o chão exposto. Escolas sem ventilação e que não cumprem o distanciamento de 1,5 m. Outras que merendeiras infectadas com a Covid-19 continuam servindo comida, e, até mesmo, escolas como o CIEP Olga Benário, tão expostas que à noite torna-se um motel para os adolescentes da região.
Em algumas unidades escolares o pessoal de limpeza está sem receber salário e, com razão, não vão trabalhar. Mediante tal situação, professores e agentes educadores estão fazendo mutirões para limpar a escola sem nada receber pelo desvio de função.
Escolas acometidas com essas irregularidades seguem abertas com a direção ameaçando os profissionais que aderem à greve pela vida. Tudo em nome da eficiência. A produção não pode parar, não importam as condições sanitárias e estruturais do estabelecimento.
Os profissionais grevistas estão pedindo a antecipação do recesso escolar para se ganhar tempo na vacinação dos trabalhadores da educação; mudar as regras de contingenciamento, fechando a escola ao detectar um caso de Covid-19; passar para home office lactantes e profissionais que coabitam com pessoas do grupo de risco; barreira de acrílico na mesa do professor; distribuição de máscaras PPF2 para os estudantes; além dos elementos básicos do protocolo de segurança sanitária.
A greve pela vida é uma luta contra o modelo de eficiência. Reabrir as escolas a qualquer custo é um insulto a saúde dos profissionais da educação e alunos. As necessidades da educação não são as mesmas que as de um comércio qualquer, é necessário uma melhoria na estrutura (principalmente nas escolas públicas), pagar os salários dos trabalhadores, a vacinação imediata dos profissionais da educação, “contratar novos servidores para a educação, docentes, técnicos e administrativos e profissionais de saúde e de serviço social para reconectarem os estudantes atingidos pela tragédia social com suas escolas; assegurar política de transporte escolar; planejar ações integradas com o sistema de saúde para permitir rigoroso rastreamento do vírus”, como colocou Leher.
Mas até o simples para lidar com a pandemia falta em algumas escolas, como álcool gel e sabão para lavar as mãos. Na Escola Municipal Frei Cassiano, a situação é mais que precária, pois além de não ter o totem de álcool gel a comunidade está com um problema generalizado de coleta de lixo e o entulho se acumula no pátio da escola. Na escola Professor Antônio Boaventura, por sua vez, só funciona um banheiro para todas as crianças.
O Rio está contabilizando 50 mil mortes decorrentes da Covid-19 e as escolas continuam abertas. Quantas vítimas esse projeto capitalista que visa transformar a escola em comércio e crianças em capital humano terá que fazer para que todos entendam que a educação tem o objetivo de formar “uma classe de intelectuais vital para o desenvolvimento de uma sociedade livre"[8] e não consumidores competitivos no mercado de trabalho? A greve pela vida é indispensável para combater esse modelo neoliberal que aliena e mata em nome do lucro.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
[1] https://esquerdaonline.com.br/2021/04/05/reabertura-das-escolas-eduardo-paes-em-alianca-com-os-negacionistas/
[2] APPLE, M. Educação à direita. São Paulo: Cortez, 2003, p. 45.
[3] Ibidem, p. 47.
[4] https://www.google.com/amp/s/noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/05/22/com-trajetoria-parecida-deputados-associados-a-lemann-divergem-na-politica.amp.htm
[5] SNYDERS, G. Alunos felizes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 19.
[6] BOURDIEU, P. Escritos sobre educação. 9 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2007, p. 53.
[7] SNYDERS, G. Alunos felizes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 14.
[8] GIROUX, H. Os professores como intelectuais. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, p. 162.