Em janeiro de 2020, estive pela primeira vez no Oriente Médio, mais precisamente no dia 3 de janeiro daquele ano, que foi quando desembarquei em Amã, capital da Jordânia, país que faz fronteira com a Síria, Iraque, Arábia Saudita, Israel e com o território palestino da Cisjordânia.
Meus planos incluíam, depois de conhecer a Jordânia, atravessar a fronteira com Israel para, então, seguir rumo à Palestina e realizar o sonho de pisar naquelas terras, sonho este que nutria desde os tempos de adolescente enquanto militante no movimento estudantil.
Tudo estaria perfeito se não fosse o dia 3 de janeiro de 2020, o mesmo dia em que um ataque aéreo dos Estados Unidos no Iraque matou o general iraniano Qassem Soleimani, principal chefe militar do Irã, marcando o início de uma escalada da tensão de proporções mundiais e, principalmente, para o Oriente Médio.
Com o risco iminente de Israel ser atacado pelo Irã me vi presa na Jordânia, sem poder avançar para o meu destino tão esperado, já que não há como chegar à Palestina sem passar por Israel, o que vou explicar mais à frente para quem não conhece tão bem aquela realidade.
Então, já que nada havia a fazer senão aguardar, fui em busca de conhecer mais sobre este curioso país chamado Jordânia, considerado uma espécie de Oásis em meio a todo o caos que habita aquela região do planeta. E como nunca tive a chance de um convívio maior com o povo muçulmano e seus costumes, aquela também me pareceu uma boa oportunidade para começar. E foi então que tive uma das experiências mais incríveis da minha vida, junto ao povo beduíno, no deserto de Wadi Rum.
Os beduínos são povos nômades que vivem no deserto e têm o nome derivado da palavra árabe al bedu, que significa “habitantes das terras abertas”. Uma das grandes lições que pude tirar do convívio com eles foi sobre sua hospitalidade. Beduínos, em geral, são muito hospitaleiros e por razões que vão além dos manuais de boas práticas. Eles entendem o bom convívio como um código de sobrevivência do deserto, já que este pode ser extremamente desafiador para os humanos. Assim, eles sabem que ao tratar alguém com cordialidade receberão o mesmo tratamento. Como disse, não é apenas um ato de educação, mas de sobrevivência.
Com isso, da experiência de convívio com os beduínos destaco para este texto o ensinamento que este povo traz a respeito desta lei tão importante e universal nas sociedades humanas, que é a lei da reciprocidade. Dá-se o que se recebe.
Mas, antes de falar mais sobre isso, quero retornar aqui à minha saga rumo à terra prometida, pois, sim, ela não acaba aqui.
Depois de uma visita ao Monte Nebo, lugar de onde supostamente Moisés avistou a Terra Santa, sabia que não poderia voltar para o Brasil sem antes conhecer mais dessa região considerada tão sagrada e que ao mesmo tempo, e justamente por isso, mobiliza tantos conflitos. Então, sem pensar mais rumei para a fronteira da Jordânia com Israel.
E foi já na fronteira que me despedi do clima de cordialidade que marcou minha passagem pela Jordânia para adentrar num universo completamente diferente do anterior, mais denso e também tenso. Aos gritos de “No pictures!” (sem fotos), fui recebida por homens armados até os dentes vindo em minha direção, que pegaram meu celular e exigiram que as fotos que fiz da placa que dizia “Bem-vindos a Israel” fossem apagadas. Depois disso, me encheram de perguntas que iam desde o porquê de estar ali até questões que lembro terem caídos em provas de História que fiz quando estava na 8° série. Bem por aí.
Passado o interrogatório e o susto, finalmente me vejo em terras israelenses e logo uma coisa me chama atenção e continuará despertando-a durante toda a minha estadia por lá: não importa o lugar, para onde olhava via jovens, muito jovens, meninos e meninas, com fuzis na mão. No ônibus um deles senta ao meu lado, outros tantos ocupam outros lugares no mesmo veiculo, no banco da praça, no restaurante, na loja de roupas, no museu, na biblioteca, em todos os lugares. Uma cena me marca até hoje, dois jovens, um menino e uma menina, pareciam apaixonados, tomavam sorvete com uma mão e com a outra seguravam cada um sua arma.
Já em Jerusalém me informo sobre como chegar à Palestina e ali descubro que estou bem perto, bastaria pegar o ônibus 21 no portão de Damasco e em meia hora estaria em Belém, a cidade onde Maria teria dado à luz a Jesus. Entro no ônibus e sigo feliz, apesar de apreensiva, para o meu destino. Para a minha surpresa, ao adentrar em território palestino não fui recebida por oficiais palestinos, mas por soldados israelenses, que não carimbaram meu passaporte como se faz quando entramos em qualquer país. E foi ali que eu de fato me dei conta de que eu estava indo a um país que não existia. A terra prometida havia ficado somente na promessa.
Ao chegar, vou caminhando até o Aida Camp, um dos principais campos de refugiados palestino, onde milhares de pessoas passaram a viver depois que foram retiradas à força de suas casas pelo governo israelense. Sou recebida por Yumna, minha anfitriã, que logo de cara me explica um pouco sem jeito sobre a necessidade de economizar água e energia, dois artigos extremamente precários por lá.
Yumna e seu marido, um jovem casal, têm um café em Belém, bastante descolado para os padrões locais. Ela me conta que é americana, de Nova York, e seu marido é palestino, nascido no Aida Camp. Depois, descubro mais à frente que ele já esteve preso pelo governo israelense por contribuir com noticias sobre os conflitos na região para jornais internacionais e permanece na lista de Israel. Isso significa que ele não pode sair do território palestino por toda sua vida ou até quando durar seu “castigo”, e como não há aeroportos na Palestina, ele está preso nessa espécie de limbo geográfico que é aquele território. Outro risco que eles correm é o de que sua companheira não tenha seu visto de permanência renovado e que eles não possam mais ficar juntos. Para se ter uma idéia do quanto a situação é dramática, quando a mãe do marido de Yumna estava prestes a falecer num hospital em Israel, ele não pôde ir até lá para vê-la pela última vez.
Dias depois, me despeço dos meus anfitriões para ir em direção a outro Campo de Refugiados próximo dali, o Dheisheh Camp, onde ficarei com a família de Aya, uma jovem mãe de três lindos filhos, casada com Ibrahem, que faz de tudo um pouco.
No dia seguinte à minha chegada eles me convidam para ir a uma festa na casa de parentes e eu prontamente aceito. Ao chegar lá me deparo com mulheres maquiadas e sem véu, mostrando com orgulho seus rostos e cabelos. Pergunto a Aya se elas podem se vestir assim somente em casa, ela diz que não, que na família dela as mulheres decidem como se vestir e se querem ou não usar o véu e me apresenta à sua mãe, Afaf, para que ela me explique melhor sobre como é ser uma mulher muçulmana na Palestina.
Afaf é uma mulher linda, de fartos cabelos negros e cuja presença já se marca no olhar. É uma mulher que, ao mesmo tempo em que aparenta força, também transmite leveza com seu sorriso largo e tantas cores distribuídas pelo corpo. Ela, muito simpática, me enche de todas as informações que eu busco tanto quanto de toda a comida que há na casa, que é deliciosa, por sinal. Mas, em algum momento da conversa seus olhos pesam e sua feição endurece. Afaf me conta que é viúva e relembra da noite em que seu marido morreu. Ele teve um parada cardíaca e precisou ir para um hospital em Israel, já que o sistema de saúde palestino é bastante precário, mas o soldado que os atendeu não parecia ter tanta pressa assim e insistia em soterrá-la de questões burocráticas, no que ela se desesperou e gritou. O olhar do soldado de volta para ela é o que Afaf me diz que jamais se esquecerá, era um olhar de desprezo, ela disse. Ela foi impedida de seguir com seu marido, pois não possuía visto para entrar em território israelense e aquela foi a ultima vez em que esteve com ele.
Com a voz ainda embargada, Afaf então chama para fazer parte da nossa conversa Ahlan, sogra da irmã de Aya, para que ela falasse sobre conflito entre Israel e Palestina e como isso repercute em suas vidas. Ahlam é uma mulher por volta de seus quase 60 anos e quando muito jovem alguns deles foram passados na prisão. Sua vida é marcada por um histórico de lutas. Foi presa aos 17 anos por lutar contra soldados israelenses que atiravam em manifestantes palestinos e hoje preside uma ONG de Direitos Humanos que trabalha, principalmente, com mulheres.
Por alguns instantes Ahlam se ausenta da sala e quando volta está segurando uma chave antiga. Ela a coloca sobre minhas mãos e me pergunta se eu sei o que esta chave significa. Todos na sala olham curiosos para mim. Digo que não. Com os olhos cheios de lágrimas, ela me diz que toda família palestina guarda consigo a chave da casa que lhe foi tomada por Israel como símbolo da esperança de um dia poderem voltar para o seu lugar, sua origem. Neste momento, todos erguem seus punhos e entoam em árabe um grito forte e uníssono sobre o quanto é preciso resistir.
Neste instante, volto a lembrar dos beduínos e sobre o fato de terem entendido sobre a lei universal da reciprocidade como forma de sobreviver ao deserto. É aí que penso naquelas meninas e meninos israelenses de caras fechadas e armas em punho, parecendo aguardar o pior a qualquer instante. Penso que diante da lei da reciprocidade, estes jovens e os filhos e netos destes jovens, enquanto isto durar, estarão fadados a viver uma vida baseada no medo e no ódio, pois uma sociedade que planta a opressão e o terror jamais poderá sonhar em colher de volta o amor e a paz.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.