Definitivamente, se a pandemia mostrou algo ao mundo foi que ninguém está isento, mesmo de dentro do isolamento de suas casas, ainda mais num período de distanciamento social e home office. Jamais houve um transbordamento dos fatos lá de fora tão intensamente em nossa vida cotidiana, de modo a demandar um engajamento sem sequer sairmos do lugar. E isso em todas as áreas da vida.
Do circo pegando fogo na CPI da Covid-19 ao cancelamento de premiações internacionais históricas, como o Globo de Ouro, que laureava os melhores do cinema e da TV a cada ano... E, neste último caso, tudo por falta de representatividade por anos e anos a fio sem corresponder ao clamor público, além de corrupção e compra de votos. Por analogia, o mundo outrora glamoroso do cinema hollywoodiano está até parecendo muito próximo com a sujeira sendo julgada na CPI brasileira.
Mas se as instituições públicas estão contaminadas com suspeitas e acusações bastante devidas, os empreendimentos culturais em posição de produzir reflexão e catarse sobre tudo isso estão igualmente a pleno vapor. A começar pela representatividade autoral em muitas produções que aportaram recentemente nas telinhas dos streamings. E, nisto, andam provando que inovações criativas andam caminhando de mãos dadas com as demandas populares.
Há séries hoje em dia que estão cultivando vínculos afetivos reais com seus espectadores, como válvulas de escape perante o período difícil que todos enfrentam de compartilhamento de perdas por todo lugar, e parece que estas personagens passam a ser membros de nossas famílias. Por exemplo, sabem o momento em que você sente que está se apaixonando? Sua barriga começa a formigar, você perde as palavras mais fáceis, gagueja e ri de nervoso, fica vermelho até os cabelos do corpo inteiro arrepiarem e você sentir tão leve que pode voar? Pois estamos nos apaixonando pela ficção como alternativa possível de catarse da realidade.
A começar pelo ator, comediante e roteirista australiano Josh Thomas, criador da série Cult “Please Like Me”, encontrada na íntegra na Netflix, e que lançou faz pouco tempo sua nova criação original: “Everything’s Gonna Be Okay”, da rede Free Form, a qual abarcou o tema da pandemia em sua dramaturgia, catalisando tudo no humor bastante irônico e humano. Se Josh já havia feito um acerto muito grande no seriado anterior, com parcerias valorosas como Hannah Gadsby (disponível igualmente na Netflix com seus premiados especiais de comédia em pé “Nanette” e “Douglas”), ele agora acrescentou ao tema recorrente LGBTQIA+ de suas produções uma questão ainda pouco falada de acessibilidade na ficção: o autismo.
Em “Everything’s Gonna Be Okay”, acompanhamos uma família que acaba de perder o patriarca, legando o direito de guarda de suas filhas menores para o filho mais velho do casamento anterior. Este é interpretado pelo próprio Josh, que aceita de forma relutante ser guardião das meninas ao lado do companheiro dele, interpretado de forma irresistível por Adam Faison.
Além disso, uma das irmãs mais novas da família não apenas encarna uma personagem dentro do espectro do autismo, como também sua intérprete (a revelação Kayla Cromer) compartilha da mesma condição de saúde – demonstrando que é possível incentivar narrativas plurais com ainda mais representatividade. E isso não a define de modo exaustivo, pois é apenas uma premissa para ela acrescentar várias óticas sob experiências de vida revolucionárias, desde experimentar um ménage à trois, e até relações abertas com outras pessoas, como uma parceira assexuada homorromântica... Ou seja, ampliando ainda mais a nossa própria forma de ver a vida.
Além do sucesso de Josh, podemos citar também duas outras séries que estão explodindo no momento em aclamação nos streamings e na TV, como “Mare of Easttown”, que conta com Kate Winslet como protagonista e produtora executiva, dispondo de sete episódios ao todo transmitidos a cada domingo 23h na HBO (e NET Now), além de “The Underground Railroad”, criada por Barry Jenkins, diretor dos oscarizados “Moonlinght” (2016) e “Se a Rua Beale Falasse” (2018), com todos os dez episódios já acessíveis na Amazon Prime Video.
Primeiramente, “Mare of Easttown” segue uma trama policial através da perspectiva da personagem homônima que dá título ao programa, na pele de Winslet, numa construção minuciosa que funde drama familiar com suspense e mistério – lembrando um pouco o que deu tão certo na primeira temporada de “True Detective”. A série funciona não necessariamente apenas pela investigação que pode levar a um suspeito de crimes seriais, mas também pelas trapalhadas pessoais e íntimas de uma cidadezinha pequena, onde todo mundo conhece todo mundo, e sendo difícil esconder segredos numa lente de aumento tão microscópica.
Além disso, o pulso firme da atriz consagrada no comando da produção permite também muitos desdobramentos criativos, inclusive com ótimas interações ao lado de seu elenco de suporte, que vai dos ótimos Evan Peters (“American Horror Story”) e Jean Smart (“24 Horas”) aos australianos Guy Pearce (“Amnésia”) e a revelação total Angourie Rice (“Homem-Aranha: De Volta ao Lar”), está no papel da filha lésbica de Kate, a mais centrada de toda a família.
A própria história pessoal da detetive interpretada por Winslet a persegue com o passado, como perdas traumáticas, disputas de guarda e o fantasma da glória de juventude como atleta premiada, uma carga pesada sob a qual ela nunca se sente à altura no presente. Com várias reviravoltas, a série disponibiliza um episódio inédito a cada semana, e a cada novo capítulo os fãs geram burburinhos nas redes sobre as teorias de conspiração como há muito não se via, provocando um hype passível de dar todos os prêmios de melhor atuação televisiva para Kate, além de provável melhor série nas próximas premiações.
E talvez a única outra produção que possa fazer frente ao sucesso de “Mare of Easttown” seja “The Underground Railroad”, na Amazon Prime Vídeo. A série adapta o romance homônimo escrito por Colson Whitehead, cuja trama perpassa um período histórico verídico e inspirado numa resistência contra a escravização em território norte-americano, atravessando a Guerra de Secessão, inclusive com uma trilha de fuga do Sul para o Norte que ganhou o nome que dá título ao livro e à sua adaptação.
A produção é capitaneada por um trio talentoso, como Joel Edgerton (“Loving: Uma História de Amor”, 2016), Thuso Mbedo (notabilizada pela série “iDrive” de 2018, que ela criou, produziu e dirigiu), além da revelação Chase Dillon, que interpreta de início um inusitado antagonista de 11 anos de idade que vai ganhando camadas que o complexificam como talvez a melhor personagem da série. A eles ainda é acrescentado um elenco de suporte cheio de participações especiais, o que gera uma narrativa bastante dinâmica, a nomear os episódios de acordo com os estados que eles perpassam pelos EUA. E ainda demonstra que não apenas o Sul era extremamente intolerante e colonizador em suas políticas escravagistas, mas que o próprio Norte mantinha muitas hipocrisias em seu discurso de alforria, com um profundo racismo estrutural difícil de ser dissolvido historicamente – uma das grandes sacadas da série ligando o passado com o presente.
Como acompanhamos a fuga e percalços da personagem Cora (Thusa Mbedo) por seu ponto de vista íntimo, com raros interlúdios para abrir outras perspectivas, os episódios oscilam entre pequenos filmes completos, alguns com mais de uma hora de duração (como a brilhante série antológica “Small Axe” de Steve McQueen disponível na Globo Play), e outros como interseções que contam apenas vírgulas menores, podendo ter até quarenta ou mesmo vinte minutos.
A composição pode soar estranha, mas é imersiva. E, mesmo nos momentos aparentemente deslocados, que poderiam soar como barrigas do roteiro, há função para todas as aparentes abstrações da trama principal. O melhor atributo da obra é justamente manter sempre o altíssimo padrão de reconstituição de época e de impressão digital de Barry Jenkins numa proposta visual ímpar para cada capítulo, com ares cinematográficos de tão belos visualmente (mesmo os mais cruéis, porém fazendo isso com elegância e fundamentando as piores torturas de forma poética para uma superação, nunca de forma gratuita).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.