Violência do Estado: elo comum entre Rio de Janeiro e Jerusalém – Blog Terra em Transe

Em 6 de maio, o RJ registrou a segunda ação policial mais violenta da história recente da cidade. Na mesma semana, em Jerusalém, forças policiais israelenses avançaram contra palestinos e deixaram centenas de feridos

Foto: Brasil 247
Escrito en OPINIÃO el

Victória Perino Rosa*

(Este é o segundo artigo da série especial Conexão Rio de Janeiro-Jerusalém, do blog Terra em Transe. Leia o primeiro artigo aqui, de autoria de Gizele Martins)

Em 6 de maio de 2021, moradores de Jacarezinho, no Rio de Janeiro, foram surpreendidos por uma ação policial que resultou na morte de 28 pessoas – 27 civis e um policial. Foi a segunda ação mais letal na história recente do Rio de Janeiro, atrás apenas da chacina na Baixada Fluminense, em 2005. A operação, em meio à pandemia de Covid-19, foi fortemente criticada, nacional e internacionalmente, pela violação dos direitos humanos. Em Jerusalém, cidade disputada entre Israel e os palestinos, as últimas semanas também foram marcadas por um crescente cenário de violência policial contra os palestinos. Em 7 de maio, última noite do Ramadã, aproximadamente 200 palestinos foram feridos no complexo da mesquita Al-Aqsa, após uma ação das forças policiais israelenses.

Apesar de terem ocorrido em espaços distintos, não se tratam de dois episódios isolados. Tanto o Rio de Janeiro quanto Jerusalém possuem um histórico de extrema violência das forças policiais contra populações locais e, em particular, contra populações racializadas/apartadas. Nesse sentido, é possível falar na existência de um elo que une ambas as cidades? Em Pacification, Capital Accumulation, and Resistance in Settler Colonial Cities: The Cases of Jerusalem and Rio de Janeiro”, os professores de Relações Internacionais da PUC-SP Reginaldo Nasser e Bruno Huberman analisam os casos da cidade do Rio de Janeiro e de Jerusalém para pensar conflitos urbanos sociais. O artigo escrito pelos pesquisadores contribui para iluminar como os episódios de violência policial no Brasil e na Palestina possuem uma relação clara com processos históricos de dominação, acumulação de capital e settler colonialism.

A violência policial e a militarização de espaços urbanos

Ao olharmos para a chacina do Jacarezinho e para os recentes episódios de repressão aos palestinos em Jerusalém, em um primeiro momento, destaca-se a semelhança no modus operandi das forças policiais em ambos os casos. Fortemente militarizadas, as polícias no Brasil e em Israel aparecem frequentemente em uniformes camuflados, ostentando aparatos e equipamentos que remontam cenários de guerras. Também não é incomum, em ambos os casos, observar a presença das Forças Armadas atuando em conjunto com as forças policiais nas ruas das cidades. Não por acaso, uma rápida busca nos principais veículos de comunicação nos oferece uma quantidade significativa de notícias e análises que reportam a situação do Rio de Janeiro e de Jerusalém como um contexto de guerra.

Por um lado, é verdade que é cada vez mais comum a constatação da existência de cidades marcadas pela normalização de paradigmas militares de ação, num esforço de disciplinar corpos, espaços e identidades através do uso da violência. Ainda que seja um fenômeno rastreável em diversas regiões no mundo, é particularmente nas cidades do chamado Sul Global que estas dinâmicas parecem assumir sua forma mais evidente.

Contudo, a perspectiva de que estas cidades se parecem frequentemente com cenários de guerra, nos quais as polícias se assemelham cada vez mais às forças armadas e vice-versa, produz interpretações que ocultam dados importantes para a compreensão do fenômeno da violência policial contra populações locais, seja no Rio de Janeiro ou na Palestina. Dessa maneira, que outras ferramentas de análise podemos utilizar para pensar a violência nestes casos?

Para além da militarização: settler colonialism, acumulação de capital e pacificação

Se, em um primeiro momento, destaca-se a semelhança no modus operandi das polícias, Reginaldo Nasser e Bruno Huberman nos lembram que é preciso ir além da identificação de duas realidades militarmente semelhantes, e analisar como os contextos sócio-políticos moldam os processos de violência em questão.

Em "Pacification, Capital Accumulation, and Resistance in Settler Colonial Cities: The Cases of Jerusalem and Rio de Janeiro”, os pesquisadores situam os casos do Rio de Janeiro e Jerusalém em um processo histórico marcado pelo settler colonialism (colonialismo por povoamento, em português), termo que descreve um processo por meio do qual um movimento colonial busca ocupar e manter soberania sobre terras nativas e substituir a população nativa (seja à força ou por assimilação), como parte de um projeto de dominação. Nasser e Huberman nos ajudam a observar este fenômeno não como um único evento relegado ao passado, mas como um processo estrutural e, portanto, constantemente reificado, ainda que sob novas roupagens.


Forças policiais israelenses avançam contra palestinos na mesquita de Al-Aqsa, Jerusalém, em 7 de maio Foto; France24 (Reprodução)

Para os grupos que buscam perpetuar essa lógica de dominação, as populações locais são percebidas como uma ameaça à ordem e frequentemente sujeitas a políticas de pacificação pelo Estado – que, inclusive, são articuladas com atores privados, tais como as empresas militares e de segurança privada. Nesse sentido, no Rio de Janeiro ou em Jerusalém, bem como em outros lugares no mundo, as forças policiais e forças armadas desempenham uma mesma função: pela violência, manter a dominação de determinadas populações. Mas, quais populações?

O artigo nos ajuda a identificar como o colonialismo por povoamento tem se mantido pela reedição de práticas e discursos coloniais. É o caso da atualização de antigas estruturas racistas em relação às populações indígenas, percebidas como atrasadas e improdutivas e, portanto, suscetíveis à exterminação e privação de suas terras. No caso da Palestina, o discurso é atualizado por conexões entre árabes-muçulmanos-terroristas e, no caso do Brasil, a lógica racista é atualizada em conexões entre negro-pobre-traficante. À estrutura racista, soma-se a forma neoliberal de reprodução de capital, que expropria, extermina e confina essas populações em enclaves segregados, estigmatizados e fortemente securitizados. A violência policial, nestes casos, se sobrepõe a diversas outras formas de violências diárias a que estas populações estão submetidas.

A partir da leitura do artigo, a questão que fica é: quem são os grupos, no Brasil e em Israel, que se articulam transnacionalmente e se mobilizam pela manutenção deste modelo de dominação? Ao que parece, a resistência contra a violência policial passa pela resposta a esta questão.

*Victória Perino Rosa é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUCSP), pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT/INEU), do Núcleo de Estudos Transnacionais para Segurança (NETS) e do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.