O ódio racial pós-moderno na série 'Them' – Por Wilson Ferreira

Ao longo dos dez episódios, Them contrapõe as origens do racismo nas comunidades religiosas puritanas do passado, com o ódio que explode contra uma família negra que se muda para um subúrbio de classe média majoritariamente branco

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Escrito en OPINIÃO el

Seguindo a esteira do terror racial de Jordan Peele “Corra” e “Nós”, a série da Amazon Prime Video “Them” (2021-) converge o clássico gótico americano de Lovecraft com o, por assim dizer, “afrogótico”. Dessa vez a casa mal assombrada é uma típica casa de um subúrbio de classe média dos anos 1950, o paraíso idílico do sonho americano. Só que agora, ameaçado pela chegada dos Emory, uma família afro-americana em pleno bairro supremacista branco. Uma família ameaçada por dentro por fantasmas e uma maldição do passado puritano religioso, e por fora pelo ódio racial da vizinhança. Passado e presente são confrontados: na história, a metanarrativa bíblica justificando o racismo. E no presente, a desconstrução pós-moderna que destruiu os meta-relatos, como os da religião. Deixando aflorar a fina flor do ressentimento pós-moderno das sociedades meritocráticas de consumo. Que vai impulsionar o ódio racial, dessa vez sem mais rodeios ou filtros.

Na sua trajetória, o conceito de Pós-moderno esteve identificado com alterações profundas ocorridas no Pós-Guerra em áreas como Artes, Ciência e Sociedade. No início, o conceito de Sociedade Pós-Industrial, tal qual criado pelo modelo do sociólogo norte-americano Daniel Bell na década de 50, esteve associado à ideia de Pós-modernidade. 

Neste modelo vemos que a sociedade industrial produzia bens materiais, enquanto a pós-industrial consome serviços. Isto é, se no passado industrial (dominado por técnicas gerenciais fordistas e tayloristas) o foco da sociedade estava na produção de bens tangíveis ou materiais (automóveis, eletrodomésticos, bens duráveis em geral), no pós-guerra vemos o predomínio progressivo da indústria de serviços: comércio, finanças, lazer, ensino, pesquisa científica.

Pensadores sobre os impactos do pós-moderno na cultura e na epistemologia das ciências como o francês Jean-François Lyotard descreveram o fenômeno da “desconstrução” generalizada na cultura, principalmente pela incredulidade em relação à metanarrativas – a perda das nossas crenças em visões totalizantes da história que prescreviam regras de conduta ética, moral e política (Filosofia, Religião, Metafísica, Iluminismo, Marxismo etc.).

Retomando o pensamento lógico de filósofos como Wittigenstein, Lyotard vai reduzir o conhecimento e a noção de verdade ao jogo de linguagens, à pragmática da comunicação que firmaria os vínculos sociais. Para ele, perguntar se um enunciado é falso ou verdadeiro não tem mais sentido para o sujeito pós-moderno. A questão é outra: saber se o enunciado tem legitimidade pela sua operacionalidade dentro de um sistema, pela sua performance. Ou seja, o enunciado “funciona”? Se sim, então ele é “verdadeiro”.

Então, que tal combinar essa crise das metanarrativas no pós-moderno com o terror racial, seguindo a esteira dos filmes de Jordan Peele Corra (2017) e Nós (2019)? Essa é a convergência sugerida pela série da Amazon Prime Video Them (2021) criada por Little Marvin que vai a fundo, na raiz sobrenatural do trauma racial norte-americano. Uma série que foi capaz de dividir a crítica especializada: de um lado, Them seria uma série angustiante e frustrante, uma “pornografia violenta” e desnecessária, além de superlotada com muitos temas, irregular e excessivamente densa.

E do outro, Them como uma narrativa forte, afiada, com performances magníficas e que “levam o espectador a navegar num mundo implacavelmente hostil, levando ao desgaste constante da alma”, como se referiu Lucy Magan, no The Guardian.

Certamente, Little Marvin dá continuidade a esse subgênero do terror racial, no qual o típico horror gótico norte-americano (cujo escritor Lovecraft é o principal expoente) encontra-se com um, por assim dizer, “afrogótico”. E dessa vez, a casa mal assombrada está numa típica casa em um subúrbio ensolarado e em tons pasteis na Los Angeles dos anos 1950. Em pleno desenvolvimento do chamado “sonho americano” do pós-guerra. 

Mas, principalmente, os primeiros passos da sociedade pós-moderna, com o início da massificação dos televisores e da sociedade de consumo e do sonho meritocrático da ascensão social representada pela posse da casa de subúrbio, o carro, o papel de parede geometricamente estilizado, a cozinha perfeita, além de um emprego de status.

Ao longo dos dez episódios de 40 a 55 minutos, Them contrapõe as origens do racismo nas comunidades religiosas puritanas do passado com o ódio que explode contra uma família negra que se muda para um subúrbio de classe média majoritariamente branco em East Compton. Mas junto com essa família não vem apenas os sonhos de um marido que arruma um bom emprego para superar o racismo na antiga vida no Sul do país. Junto, acompanha uma maldição sobrenatural, os fantasmas dos racismos do passado que tentarão destruir por dentro a resiliência daquela família.

Fantasmas que eram justificados pela metanarrativa bíblica de uma comunidade puritana na época da Guerra Civil. Para encontrar um novo tipo de ódio racial, dessa vez não mais justificado por metanarrativas religiosas. Mas, agora, pela compulsão do ressentimento naqueles que não conseguem subir na vida em uma sociedade meritocrática.

A Série

Os episódios acompanham a saga dos Emorys - marido e mulher, Henry (Ashley Thomas) e Lucky (Deborah Ayorinde), e suas filhas, Ruby Lee (Shahadi Wright Joseph) e Gracie Jean (Melody Hurd) - a caminho de sua nova casa idílica no bairro de East Compton, em Los Angeles, naquela época o pioneiro de um projeto de subúrbios para uma classe média eugenista e supremacista branca. 

Henry aceitou um novo emprego em engenharia aeronáutica e, embora já saibamos que eles deixaram a Carolina do Norte por motivos traumáticos parcialmente revelados (mostrado num prólogo perturbador), no carro eles exalam positividade e otimismo. Mas logo recebem o primeiro banho de água fria: assim que chegam em seu novo bairro, são saudados apenas por olhares intensos de desconfiança e ódio, pos moradores que em breve, em uma reunião fechada, os descreverão como “mofo preto”: uma ameaça contaminante e contagiosa.

Coisa que inquieta a eminência parda do levante racista, Betty Wendell (Alison Pill), a vizinha do outro lado da rua dos Emory, preocupada com o crescimento de um mofo que está prejudicando o seu perfeito papel de parede da cozinha. Uma metáfora que se estende por toda a série já que sua fixação reflete sua fixação pelos Emory e sua percepção deles como uma praga na vizinhança.

Ela os vigia desde o momento em que eles param pela primeira vez em sua garagem, conduzindo os vizinhos em várias ações direcionadas destinadas a comunicar a clara falta de boas-vindas em diversos pequenos atos de terrorismo (para começar, envenenando o pequeno cachorro dos Emory). Para Lucky, que já deixou para trás uma casa assombrada pela memória da maldade da “velha hospitalidade sulista”, a ameaça não pode ser facilmente ignorada. Entre as duas mulheres existe uma história de cores distintas: o mundo de Betty em tons frios, enquanto tudo em Lucky é quente – roupas, gosto musical etc. No entanto, a exposição constante e as ameaças das rondas policiais, destroem o bem-estar de Lucky. e ela não consegue se livrar da sensação de que, independentemente do que esteja acontecendo lá fora, ainda há "algo podre" dentro de sua própria casa, o Mal que começa a acompanhar suas filhas.

Quanto a Henry, um engenheiro e veterano que carrega ainda traumas da 2ª Guerra Mundial, esse muito respeitável personagem negro é referido quase exclusivamente por seus vizinhos e colegas brancos de trabalho como "fanfarrão", "Kong", "filho" ou "menino". 

Seu novo chefe é, francamente, um puxa-saco dos superiores que desconta seu ressentimento nele. E em uma cena notável, em um elevador no trabalho, ele fica quieto entre dois colegas brancos que conversam. Um deles deixa cair uma caneta, e, num jogo de poder de vários segundos, todos ficam parados, esperando que Henry se abaixe e pegue a caneta. E ele faz exatamente isso.

Them está ambientado no momento da história da urbanização norte-americana chamada “A Grande Migração” em que milhões de negros migraram do Sul racista em busca de melhores oportunidades no ensolarado Sul da Califórnia. Para lá encontrarem o supremacismo das classes médias (temerosos de que famílias negras desvalorizem seus bairros) e a especulação imobiliária baseada em contratos com bancos pouco transparentes: pagar taxas de juros muito mais altas do que as dos brancos no qual os bancos emitiam hipotecas predatórias prendendo os negros numa vida inteira de dívidas. 

O Mal começa a se manifestar aos poucos, tentando minar por dentro a resistência psíquica num bairro cujo cerco racista cada vez mais se fecha: a pequena Gracie Jean assombrada por uma entidade por uma entidade esguia que se passa como sua professora, Lucky assombrada por uma figura puritana alta e com chapéu preto chamado Hiram (Christopher Heyerdahl), e Henry pela sua raiva reprimida representada pelo fantasma de um Tap Dance Man (Jeremiah Birkett) – dançarino negro estereotipado do teatro vaudeville que tornou-se o ícone da representação racista do afro-americano. 

Esse Mal que tenta destruir os Emory (a série sugere que outra família afro-americana de East Compton também foi levada à loucura, com a mãe matando seus filhos e maridos ao tentar “embranquecê-los”) vem de um passado no qual a metanarrativa bíblica justificava, através da retórica do Sagrado, o porquê do ódio racial – afinal, diante de Deus e através da leitura ao pé da letra de trechos da Bíblia, negros são humanos.

O Pós-moderno

Porém, o drama dos Emory se passa na década de 1950, nos momentos inaugurais do pós-moderno no qual as metanarrativas totalizantes estão dando lugar à fragmentação da sociedade de consumo.

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**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.