Para pensar o Dia do Livro (18 de abril), seria interessante resgatarmos uma obra escrita em um período da história estadunidense muito similar ao que os brasileiros estão vivendo hoje. Trata-se de Fahrenheit 451, escrito por Ray Bradbury em 1953, em meio ao que ficou conhecido como Macarthismo.
Em 9 de fevereiro de 1950, o senador Joseph McCarthy, em discurso, afirmou ter uma lista de servidores públicos comunistas que ocupavam postos no governo. A partir de então, professores, cientistas, artistas e intelectuais foram perseguidos de forma rígida até, pelo menos, 1954, quando em 2 de dezembro, o senado dos EUA aprova nota de censura ao senador McCarthy.
Até mesmo pesquisadores da estirpe mais reacionária atual, como Lewis Gaddis, afirmam que com “o surgimento do Macarthismo nos Estados Unidos [...] não era nada claro que as democracias ocidentais poderiam conservar a tolerância para discernir a respeito das liberdades civis que as distinguia dos ditadores".[1]
O objetivo era persuadir os estadunidenses “de que estavam, realmente, ‘em guerra’. Tinham de obter reservas de moralismo, persuadir-se de que a luta não era exatamente entre a América e a Rússia, mas entre o bem e o mal, entre o pensamento correto e o pensamento errado".[2]
A economia americana cresceu durante a 2ª Guerra Mundial e muitos tinham receio de que com o fim do conflito, uma grande depressão poderia nascer, assim como ocorreu no período que se sucedeu após a 1ª Guerra Mundial. Deste modo, o governo Truman (1945-1952) investe em “uma aliança entre empresas, governo e Forças Armadas com concessões limitadas à classe trabalhadora. Comentou Charles E. Wilson, presidente da General Motors, que o melhor cenário seria uma ‘economia permanente de guerra'".
Deste modo, forjou-se uma ameaça soviética para assim se manter “alto o orçamento militar, enquanto reformas – como um plano de saúde nacional e mais habitação pública – foram derrubadas no Congresso, sob a pecha de socialistas".[3]
Ray Bradbury possui uma frase célebre sobre o que é ficção científica: “Ficção científica é uma ótima maneira de fingir que você está falando do futuro quando, na realidade, está atacando o passado recente e o presente".
Fahrenheit 451 conta a história de Guy Montag, um bombeiro que tem como trabalho queimar livros. As pessoas que possuíam livros eram consideradas criminosas, as que pensavam demais eram consideradas pacientes psiquiátricos e “todo homem é demente quando pensa que pode enganar o governo e a nós”, afirma Beatty, chefe dos bombeiros.
Montag era um bombeiro normal, um trabalhador alienado comum, até que em um dia de trabalho queimou uma enorme biblioteca na qual a dona dos livros preferiu ser queimada junto com as obras que tanto amava.
O bombeiro, chocado, guardou um livro para si. Surge a curiosidade: o que havia nos livros a ponto de as pessoas cometerem suicídio? A partir daí desenrola-se a trama desta pequena novela.
Mas é em uma conversa entre Montag e seu chefe que o pensamento anti-intelectual (característico do macarthismo) é exibido. Trata-se de uma valorização do utilitarismo e do ensino tecnicista, muito parecido com a proposta do governo Bolsonaro que busca atualmente taxar livros e valorizar o ensino técnico.
“A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas [...] Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?”.[4]
Beatty continua discursando para Montag, que estava de cama, ainda em choque, pois a imagem na mulher pegando fogo não saía de sua mente: “Mais esporte para todos, espírito de grupo, diversão, é não se tem de pensar, não é?”
O chefe do corpo de bombeiros odeia livros porque podem incitar as minorias: “não podemos permitir que nossas minorias sejam transformadas e agitadas". E ataca as minorias posicionando-se contra as diferenças no maior estilo conservador “todas as menores das menores minorias querem seus próprios umbigos, bem limpos".[5]
De acordo com Beatty, não foi o governo quem criou tudo, mas “a tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha, graças a Deus". O discurso predominante é de que “todos devemos ser iguais" somente assim “você pode ficar o tempo todo feliz".
Vivemos numa época que quer imitar o Macarthismo. O governo Bolsonaro nos leva para dentro do livro de Bradbury, uma metáfora do discurso conservador de direita que odeia os que pensam, os cultos e intelectuais.
Beatty poderia ser facilmente o ministro da Educação do governo Bolsonaro e isto fica claro nesta passagem: “Com a escola formando mais corredores, saltadores, fundista, remendadores, agarradores, detetives, aviadores e nadadores em lugar de examinadores, críticos, conhecedores e criadores imaginativos, a palavra ‘intelectual’, é claro, tornou-se o palavrão que merecia ser”.
Os livros, a inteligência, o menino brilhante da escola que sempre respondia às perguntas corretamente, nos deixam “com cara de cretinos". É preciso queimar os livros para promover a “nossa paz de espírito, a eliminação do nosso compreensível e legítimo sentimento de inferioridade”.
A ignorância é a paz, a igualdade. No maior estilo Bolsonaro, que a todo instante forja polêmicas para encher o prato da mídia, Beatty mostra que o excesso de “fatos" é o caminho para entreter as pessoas, não dando a elas tempo para refletir. “Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com ‘fatos’ que elas se sintam empazinadas, mas absolutamente ‘brilhantes’ quanto a informações [...] E ficarão felizes porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar experiências. Aí reside a melancolia".[6]
Uma vez o sociólogo Pierre Bourdieu disse que “alguém que não lê é mutilado". E essa é a intenção ao dificultar o acesso aos livros, mutilar as pessoas de sua capacidade de pensar. E se “penso logo existo", podemos não estar com nossa existência em risco, mas certamente limitada.
Em certa altura da novela, Montag reflete: “Talvez os livros possam nos tirar um pouco dessas trevas. Ao menos poderiam nos impedir de cometer os mesmos malditos erros malucos!”. As trevas pelas quais os brasileiros passam hoje podem ser ameaçadas caso deem a eles o poder da leitura.
Bolsonaro tem como objetivo repetir os “malditos erros malucos" presentes na História do Brasil e para convencer as pessoas a segui-lo nessa empreitada ele distorce a História e dificulta o acesso aos livros, à memória. Na história contada por Bradbury, as pessoas perderam tanto a memória que são incapazes de lembrar até mesmo como se conheceram.
Das distopias escritas, de Huxley a Orwell, a que mais chegou perto do mundo atual foi a de Bradbury. O Brasil é um cenário perfeito para uma distopia. Em meio à uma pandemia que vitimiza mais brasileiros, o governo dificulta o acesso a livros, ao mesmo tempo que facilita o acesso às armas. O Brasil já foi uma piada pronta, hoje é uma ficção distópica pronta.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
[1] GADDIS, J. L. Nueva historia de la Guerra Fría. México, D. F. Fondo de Mondo, 2009, p. 41.
[2] TEMPERLEY, H. e BRADBURY, M. Guerra e Guerra Fria. In: _______. (orgs.) Introdução aos estudos americanos. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 318-319.
[3] PURDY, S. O século americano. In: Karnal, L. (org.) História dos Estados Unidos. São Paulo: Contexto, 2007, p. 227.
[4] BRADBURY, R. Fahrenheit 451. São Paulo: Biblioteca Azul, 2020, p. 78.
[5] Id., p. 80.
[6] Id., p. 84.