Em um teatro de operações de guerra semiótica híbrida, todos os atores funcionam no piloto automático, sob o loop OODA (Observação-Orientação-Decisão-Ação), retroalimentando o cenário caótico planejado pela operação psicológica. O melhor exemplo é a narrativa e o imaginário da vacina Covid-19. Tudo começa com a deliberada sabotagem do governo federal (negacionismo, omissão, etc.) para hipervalorizar a vacina (através da escassez) como solução individual em detrimento de ações coletivas. Ato contínuo, governadores e prefeitos respondem com a corrida (maluca) das vacinas e se esmeram para criar pseudoeventos de vacinação em conta-gotas ao estilo dos SACs corporativos. Enquanto a grande mídia vende imagens de “alegria” e “esperança” com imagens de felizardos sendo vacinados. No mercado do imaginário hiperinflacionado, a vacina vira a varinha de condão para um alívio meramente individual (a “vacina Prozac”) enquanto a sociedade afunda no caos, sem soluções coletivas.
Esse negócio tá virando uma novela. 30 milhões de dólares. Eu tô me expondo publicamente toda semana. Entendeu? (bate na mesa) Tô gastando meu capital toda semana. Eu vou pegar esse chinês pelo pescoço (bate na mesa). Vai ter que ter como. Não tem esse negócio. Nós estamos gastando 30 milhões de dólares, eu tô (bate na mesa) me expondo politicamente. Estamos colocando o peso do governo de São Paulo para ajudá-los. Não dá pra ficar nessa história. “Não sei, não dá...”. Tá me irritando. Você liga pra esse chinês, seu amigo (fala para Dimas Covas): “segunda-feira, o governador vem aqui, às 10h30. É bom você ter uma resposta pra ele”. Ele está falando com um cliente de dois bilhões e meio de reais. Só tem um cara se expondo aqui. Sou eu, fundamentalmente sou eu. Eu tô no primeiro plano nessa história. Publicamente. Ainda sofrendo ataque do Bolsonaro, bolsomínion, bolso não sei o quê. Cada vez que tem um problema, eu fico mais exposto. Cadê a vacina? Num pacote escrito CoronaVac. É mortal. Não há Anvisa, nem Bolsonaro, nem bolsomínion que resista. Então é importante chegar a vacina. Essa imagem é de uma força política, de opinião pública, irresistível. Irresistível. E agora, Bolsonaro, como é que fica? (João Doria Jr em áudio de reunião de 06/11/2020 “vazada” pela série da Globoplay “Corrida da Vacina”).
Em sua única visita aos EUA, em 1908, tendo Carl Jung ao seu lado, conta-se que ao avistar o porto de Nova York e a Estátua da Liberdade, Sigmund Freud teria dito: “Eles não sabem que trazemos a peste”. Sugerindo que a descoberta do inconsciente retiraria os norte-americanos do conforto das suas tradições.
Porém, Freud não suspeitava que a “peste” já estava naquele país: bastava apenas ser posta em prática. E isso aconteceu alguns anos depois, em 1919, quando o seu sobrinho Edward Bernays abriu o primeiro escritório de consultoria em relações públicas – cujas técnicas revolucionárias de propaganda combinavam os trabalhos de pesquisadores como Gustave Le Bom, Walter Lippmann mas, principalmente, a psicanálise de seu tio, Freud.
Desde que Bernays conseguiu tornar o banho mais popular entre as crianças ao promover o sabão Ivory, da Protecter & Gamble, com um concurso nacional de flutuação de bolinhas de sabão (“Ivory flutua melhor do que as outras marcas”), a América passou a viver a era na qual a fabricação de pseudoeventos passou a ser uma força social dominante. Imagens e simulações de eventos tomaram o lugar dos acontecimentos reais ou históricos.
Pseudoevento: não importa se o sabão Ivory tem realmente propriedades antissépticas. O que importa é parecer ter ao mostrar bolhas que flutuam mais longe do que as marcas concorrentes.
Depois disso, nunca mais a opinião pública e as técnicas de propaganda foram as mesmas. As imagens como pseudoeventos superaram a velha propaganda baseada na repetição (a mentira martelada que se torna verdade) para impor a ideia de que a opinião pública é um teatro de operações de percepções e impressões.
O áudio (transcrito acima) supostamente vazado da reunião do governador de SP João Doria Jr com os seus secretários revela muito mais do que aquilo que o “vazamento” do documentário da Globo queria mostrar: revela a presença do espírito de Edward Bernays – a modelagem da opinião pública com pseudoeventos.
Vacina Já!
A exortação “Vacina Já!”, clamada tanto por figuras da direita como Doria Jr, quanto pela esquerda, é o resultado de uma elaborada guerra semiótica que inundou a opinião pública tanto com uma narrativa (salvará vidas, reabrirá a Economia e trará empregos) quanto com um imaginário (a seringa da vacina como uma varinha de condão de salvação individual, a “Vacina Prozac” que resolverá o baixo astral).
Num jogo casado Governo Federal-governos estaduais-grande mídia (logicamente, com todos operando no piloto automático em loop OODA – Observação Orientação, Decisão, Ação), a corrida pela vacina tornou-se um verdadeiro pseudoevento, engenharia de relações públicas com o velho espírito de Bernays: através de palavras-fetiches como “protocolo” (os famosos “protocolos de tratamento e prevenção”), “programação” (pomposos nomes como “Programa Nacional de Imunização”, “cronograma” (os caóticos “Cronogramas de Vacinação” estaduais), “aplicativo” (aplicativos como “Conecte SUS” como o “controle de vacinação na palma da sua mão”), não importa se está ou não ocorrendo vacinação: o que importa é criar não só a aparência de que algo está acontecendo mas, principalmente, alimentar o desejo e o imaginário da vacina – a vacina como solução individual melhor do que qualquer medida coletiva, como o lockdown.
Desde o primeiro dia do governo Bolsonaro e a consolidação do golpe militar híbrido que ninguém percebeu por que não foi televisionado, estamos imersos num verdadeiro teatro de operações psicológicas, ou aquilo que a Inteligência militar chama de “terreno humano” – o paroxismo da fabricação de pseudoeventos. Só que agora, pseudoeventos turbinados pela chamada engenharia do caos.
O pseudoevento da Vacina Prozac
A partir do momento em que a Organização Mundial de Saúde elevou a contaminação do novo coronavírus ao status de pandemia, Bolsonaro adotou de imediato o discurso do negacionismo – viu tudo como uma “gripezinha” e afirmava: “a pressa da vacina não se justifica”. Mesmo diante da escalada dos números de contaminados, mortos e a crise dos sistemas de saúde público e privado.
O manchuriano Bolsonaro (assim como a Inteligência militar, que cuidadosamente o preparou para o papel de homem-bomba – sobre isso, clique aqui) não sofrem de algum déficit cognitivo que os faça não compreender o drama humano do cenário. Pelo contrário, o drama do “terreno humano” dá um tríplice benefício estratégico:
(a) O discurso negacionista eleva o moral da tropa dos 30% do eleitorado fundamentalista (sem falar dos milicianos digitais e físicos) que facilmente conduziriam Bolsonaro para um eventual segundo turno nas eleições 2021;
(b) Paralisar deliberadamente as ações do Ministério da Saúde para empurrar a crise sanitária para o pântano da judicialização – agenda da extrema-direita, cujo efeito é criar o chamado controle total de espectro político.
(c) Ao sabotar deliberadamente a aquisição dos imunizantes, Bolsonaro eleva o valor da vacina no mercado do imaginário através da escassez – de resto, é a própria essência da produção de valor no mercado em geral no capitalismo: gerar escassez para elevar a demanda e o valor de qualquer produto.
Ato contínuo, os governadores passaram a privilegiar a corrida (maluca) pelas vacinas. Principalmente depois que perceberam o custo político das soluções públicas ou coletivas: medidas restritivas, lockdown tabajara, lockdown real, hospitais de campanha etc.
O grande aviso foi o impeachment do governador Wilson Witzel, motivado pela suspeita de envolvimento em compras fraudulentas e superfaturadas de equipamentos e insumos no combate à pandemia.
Dessa maneira, a corrida pelas vacinas transformou-se num programa de vacinação em conta-gotas, análoga à estratégia dos serviços de atendimento ao consumidor (os SACs): disque 1 para... disque 2 para... se quiser voltar ao menu inicial disque... e assim em diante, simulando um atendimento que está sendo adiado ad infinitum. Não sem tocar peças de áudios de outros produtos da empresa, para tornar a espera/simulação mais produtiva...
Com o apoio semiótico da grande mídia, o pseudoevento do programa-cronograma-aplicativos de pré-cadastramento de imunização reforça o imaginário da vacina: matérias motivacionais com felizes vacinados com sorrisos aliviados mostrando o certificado de vacinação ganham mais destaque do que os cenários incertos e, até aqui, desfavoráveis de aquisição de insumos para a produção de vacinas em solo brasileiro para um programa real de imunização em massa.
Imagens de um hospital de campanha, no Centro do Rio de Janeiro, numa “parceria com o Exército” é inaugurado como posto de vacinação... repórteres falam em “alegria” e “esperança” na TV... mas, vacinação com qual vacina?
A negação de ações coletivas
A grande questão desse imaginário da vacina hiperinflacionado pela escassez e sabotagem deliberada de Bolsonaro é que ele esvazia o fato de que as políticas de combate a uma pandemia devem ser principalmente públicas, ações coletivas.
Enquanto a OMS alerta que a vacinação não é suficiente para combater a Covid-19, em junho de 2020, dois artigos publicados na revista Nature já apresentavam estimativas dos efeitos iniciais das medidas restritivas. Um deles (clique aqui), tratando das medidas de redução de contágio adotadas em 1,7 mil diferentes localidades da Ásia, Europa e EUA, até então, sugeria que mais de 140 milhões de infecções haviam sido "evitadas ou adiadas" graças às restrições. Outro (clique aqui), sobre 11 nações europeias, calcula que 3 milhões de vidas haviam sido salvas pelas restrições, até 4 de maio.
Países que fizeram a regra conseguiram reabrir suas economias como Nova Zelândia, Vietnã, Portugal, Reino Unido e Austrália. No Estado de São Paulo, Araraquara foi um exemplo, com lockdown de um mês (fechando até mercados) que resultou em redução de 80% nas ocorrências de mortes pela Covid-19.
Saia justa para a grande mídia: enquanto Araraquara vivia o colapso da Saúde, sem vagas nas UTIs e a ameaça da crise no fornecimento de oxigênio, o prefeito Edinho Silva era continuamente convidado a dar entrevistas ao vivo nos telejornais. Após o sucesso do lockdown, Edinho quase desapareceu das telas. No máximo, notícias anódinas sobre o sucesso do lockdown e algumas entrevistas com a secretária municipal da saúde. Por quê? Ora, Edinho é do PT...
O reforço desse imaginário da vacina como solução mágica para todos os problemas traz duas consequências imediatas, inputs positivos para a engenharia do caos:
(a) a vacina “privatiza” o imaginário: “vacinei, fiz a minha parte e agora estou livre!”. Conecta-se com o discurso neoliberal promovido pela grande mídia para a solução de qualquer problema, cuja fórmula pode ser reduzida da seguinte maneira: “faça a diferença, cada um faz a sua parte”. Vacinação em drive-thrus (a mais destacada pela mídia, sempre com repórteres de plantão), com as indefectíveis imagens das filas de carros, reforçam ainda mais essa solução individualizada.