Por Ana Luísa Calvo Tibério *
Em um momento em que se continua a discutir a importância do petróleo, o papel das revoltas sociais e da atuação das grandes potências no Oriente Médio para compreender os desdobramentos da geopolítica da região quando se completa dez anos da Primavera Árabe e vinte anos do 11/09, um artigo propõe um olhar crítico e fora da curva sobre o surgimento do Iraque no início do século XX. É o que propõem os autores de “The End of the Ottoman Empire and the creation of the Iraqi state beyond Sykes-Picot: Between Imperialism and Revolution”, Reginaldo Mattar Nasser e Rodrigo Augusto Duarte Amaral. Professores do curso de Relações Internacionais Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadores do Grupo de Estudos em Conflitos Internacionais da mesma instituição, têm parte de seus estudos voltados à análise de processos históricos, políticos, econômicos e sociais ocorridos no Oriente Médio, abordando aspectos internacionais e transnacionais ora negligenciados pela literatura acadêmica tradicional. É o que se observa no artigo em questão, cuja proposta é estudar a desintegração do Império Otomano e o surgimento do Estado iraquiano.
Muito embora os trabalhos acadêmicos que estudam os processos de delimitação das fronteiras no Oriente Médio pós-otomano normalmente acabem por se ater aos aspectos formais, diplomáticos e de direito internacional do processo, não é esta a perspectiva de Nasser e Amaral. Eles compreendem os tratados e acordos estabelecidos na época como um instrumento político, não como o fim do processo, visto que não ocorreram em um espaço vazio.
Dessa forma, os autores estruturam o artigo em quatro partes principais, além da introdução e da conclusão. Inicialmente, eles apresentam um quadro sobre Império e Imperialismo no Oriente Médio no início do Século XX. Logo, voltam-se às reflexões sobre a questão do petróleo nas definições territoriais e no controle britânico pós-otomano, bem como ao papel dos atores sociais nas revoltas árabes, seja negando ou associando-se a esse processo, com foco nas disputas sobre Mossul como território-chave, local com grande potencial petrolífero. Por fim, abordam outro aspecto essencial, mas quase nunca mencionado: a influência do modelo alternativo de internacionalismo advindo da Revolução Russa de 1917 em contraposição ao modelo liberal preponderante. Estes processos tendem a ser abordados separadamente, mas em conjunto compuseram as condições sociais e políticas para a desintegração do império Otomano e criação do Iraque, bem como outros Estados no Oriente Médio.
O início do século XX foi marcado por uma série de alterações políticas, econômicas e sociais que geraram impactos até os dias de hoje no Oriente Médio. A emergência de novas classes sociais, novas formas de expressão política e do novo sistema de administração internacional foram alguns marcos importantes. Em especial, a criação do Sistema de Mandatos no âmbito da Liga das Nações buscou encontrar um equilíbrio entre a expansão colonial e a independência genuína da região, atribuindo uma nova roupagem liberal às antigas formas de soberania imperial, sem, contudo, romper com a exploração econômica e a subjugação.
A esse cenário soma-se o aumento da demanda por petróleo em um contexto de guerras e o potencial petrolífero da região. Isso reorientou as diretrizes políticas e bélicas britânicas que voltaram sua influência para onde existia ou seria provável existir petróleo. Daí a especial importância da região Mesopotâmica, em especial ao norte, em Mossul, local de disputa entre Grã-Bretanha, França, EUA e os otomanos remanescentes.
Ao mesmo tempo, não é possível ocultar o papel das revoltas árabes e da participação dos atores locais no processo de desintegração do Império Otomano e de criação do Iraque. Alianças de elites árabes, sobretudo a dinastia Hachemita, com potências europeias, conflitos internos por disputa de poder, eventuais lacunas de poder e revoltas de forças tribais são alguns dos aspectos abordados pelos autores do artigo e bastante ofuscados pela literatura tradicional. Particularmente, a Revolução Iraquiana de 1920, fruto de uma insatisfação local com a exploração britânica, gerarou mudanças significativas na estrutura política do futuro país, ampliando o nacionalismo dos iraquianos e enfraquecendo a Grã-Bretanha, embora nunca tenha havido de fato um rompimento, haja vista a manutenção de bases aéreas e da relação com as elites nacionais iraquianas.
Ademais, é preciso considerar o papel da Revolução Bolchevique e sua aspiração internacionalista no processo. Ainda que não tenha tido influência direta na manifestação de resistência iraquiana à presença britânica na década de 1920, representava, para a Grã-Bretanha, uma forte ameaça em um contexto de instabilidade. Com forte potencial revolucionário, as revoltas no Iraque poderiam gerar um efeito dominó na região e, assim, a ideologia comunista poderia encontrar solo fértil na Ásia e no Oriente Médio. Essas preocupações são reveladas no texto por meio de documentos e diálogos políticos britânicos.
Assim sendo, nota-se que, diferentemente da maior parte dos trabalhos acadêmicos que abordam os processos históricos só pela perspectiva nacional, “The End of the Ottoman Empire and the creation of the Iraqi state beyond Sykes-Picot: Between Imperialism and Revolution” aborda diferentes acontecimentos como partes de um mesmo momento histórico global. É ousado e inovador, de modo que sua leitura se faz essencial para aqueles que não se acomodam frente aos reducionismos de um pensamento eurocêntrico.
O surgimento do Estado Iraquiano não ocorreu em um vácuo de tempo e espaço, apenas como reflexo dos tratados pós-Primeira Guerra, tampouco é apenas resultado das ambições britânicas, como tentam impor os principais estudos acadêmicos da área. Está, pois, intrinsecamente ligado a histórias de lutas, conflitos, disputas, insatisfações e resistência. Compreender este processo histórico é como analisar um filme, mas sem esquecer de onde se vê e qual a lente utilizada para sua compreensão. Por isso, Nasser e Amaral são muito bem sucedidos na redação desse artigo que, definitivamente, não é mais do mesmo.
*Ana Luísa Calvo Tibério é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (2019) e graduanda em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É membra do Grupo de Estudos em Conflitos Internacionais (GECI-PUC).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.