A imprensa nacional acaba de divulgar que Ernesto Araújo está de saída do Ministério das Relações Exteriores. Não fará falta. Seu desligamento, que sempre foi justificável por uma vasta gama de motivos, passou a ser mandatório nos últimos dias quando constatado que fora peça-chave para a configuração do caos pandêmico no país.
No último dia 24, em audiência no Senado, convocada para saber sobre a política exterior do Brasil na aquisição de vacinas contra a Covid-19, o ex-chanceler enojou a todos. Negou qualquer atraso no processo de compra de imunizantes, refutou retardo na política interna de vacinação e, para completar, posicionou-se claramente contra a quebra de patentes de vacinas, ignorando os benefícios de tal fato para o Brasil. Enquanto caprichava nas aleivosias, o Brasil ultrapassava a duríssima cifra de 300 mil vidas roubadas pela pandemia.
Dois dias após a sabatina (26), veio à lume a informação de que no ano passado o ex-ministro trabalhou contrariamente à adesão do Brasil ao consórcio Covax Facility, articulado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para aquisição e distribuição dos imunizantes da AstraZeneca/Oxford. Para o ex-chanceler, a adesão ao consórcio significaria reforçar uma OMS manipulada pela China para frustrar os interesses do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e implantar o domínio comunista no mundo. Na verve desta esdrúxula tese, Ernesto Araújo criara, desde o início da pandemia, pesados incidentes diplomáticos com o parceiro asiático, avalizando manifestações elucubradas do filho do presidente do Brasil, então à frente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, que urrava aos quatro cantos que o caos era uma invenção proposital comunista. O vírus era “chinês” e a primeira vacina aventada no país, a CoronaVac, desenvolvida por cooperação do Instituto Butantan com a farmacêutica Sinovac, da China, era a “vachina”. Esse acirramento diplomático em torno de um “comunavírus” tardou o envio de insumos da CoronaVac para o país.
Hoje (29), cinco dia após a sabatina, os 300 mil óbitos saltaram para 312,2 mil. Já são 12,5 milhões de casos de Covid-19 confirmados, um extermínio bárbaro de brasileiras e brasileiros. O fato tem repercutido na imprensa mundial. No fim de semana, o Brasil foi destaque negativo nos jornais norte-americanos The New York Times, The Wall Street Journal e The Washington Post, na revista britânica The Economist, e em inúmeras agências de notícias internacionais. A situação do país foi mencionada em importantes veículos informativos, como o francês Le Monde e a revista alemã Der Spiegel.
Não é por menos, o Brasil é o epicentro da pandemia de coronavírus no planeta, com direito a variante própria considerada por epidemiologistas e infectologistas mundo afora a mais transmissível e agressiva de todas as existentes. O povo brasileiro sofre com uma vacinação em marcha lenta, decorrente de uma política desastrosa de enfrentamento à crise, que não previu a gravidade das consequências do que estava por acontecer ou então que a previu e quis exatamente isso. Independentemente do que seja, o Brasil, hoje, é um perigo para o mundo. Um perigo que assusta a comunidade internacional que se vê sob risco do alastramento de uma nova pandemia transpassar as fronteiras internas. Diante do fato, o Senado apelou aos órgãos internacionais e nações, por solidariedade no enfrentamento do caos brasileiro. Mas como achar que a comunidade internacional irá se compadecer com o drama do país se mesmo o Senado hesita em tomar as medidas necessárias à contenção efetiva do problema?
Até as citadas matérias no exterior sabem que o pior adversário do Brasil na guerra contra o coronavírus é o governo brasileiro. O presidente da República negou várias vezes a gravidade da pandemia, posicionou-se contra a vacina, colocou-se refratário às recomendações sanitárias das autoridades internacionais e nacionais de saúde, prescreveu e determinou a distribuição de remédios ineficazes para a doença, deixou faltar oxigênio nos hospitais, embaraçou a liberação de recursos para UTIs e leitos de atenção especializados, complicou ao extremo o desembolso do auxílio-emergencial, dificultou o trabalho de gestores estaduais e municipais que tentavam contrapor-se ao caos pandêmico. Pôs em curso uma necropolítica em alto grau e o que o Senado fez? Assistiu.
Assistiu ao governo brasileiro não só confrontar abertamente a OMS, como retardar suas contribuições financeiras. Um governo que quase deixou o país de fora de um consórcio internacional de vacina por puro preconceito. Um governo de três ministros da Saúde durante o processo pandêmico e uma outra que caiu antes mesmo de assumir. Um governo em que o atual ministro da Saúde tem o desplante de vir a público, após o extermínio de 300 mil vidas, dizer que agora é obrigatório usar máscaras nas dependências do Ministério. Não faz uma semana que este governo viu frustrada pelo STF sua intenção de suspender medidas de lockdown determinadas pelos estados.
Ora, por que raios a comunidade internacional irá se irmanar para resolver um problema do Brasil se nem o Brasil busca resolvê-lo? Por que o Senado não abre uma CPI para apurar as responsabilidades sobre a pandemia? Por que o Senado não provoca a Câmara dos Deputados sobre a abertura de um processo de impeachment contra o presidente da República pelo cometimento de tantos crimes de responsabilidade já apontados por inúmeras organizações da sociedade civil em dezenas e dezenas de requerimentos?
O dever de solidariedade é imperativo na sociedade internacional, mas como ser solidário com um país que não tem sido solidário com ninguém? Ao contrário, que tem hostilizado parceiros, desacreditado órgãos internacionais, fugido de suas responsabilidades externas? O Brasil é contra o globalismo, o multilateralismo, tem chocado o mundo inteiro com visões arcaicas sobre as questões mais caras à humanidade e quer receber solidariedade? O país se fechou num casulo. Apostou todas as fichas numa fidelidade canina ao vigarista Donald Trump, símbolo internacional da truculência no trato das pessoas e da intolerância nas relações exteriores, e agora vê-se órfão. Pior, com o presidente da República herdando de Trump a pecha de vilão internacional e o seu agora ex-chanceler a pecha de vassalo do imperialismo, marionete do negacionismo, todos três fadados ao lixo do lixo da história.
Segundo a imprensa, uma das razões para a queda de Ernesto Araújo foi um entrave com a senadora Kátia Abreu. Menos mal que o Senado comprou a briga, afinal, um presidente descompensado tem que contar pelo menos com uma assessoria mediana. As orientações emanadas do Itamaraty à política exterior do Brasil têm sido vergonhosas. O Brasil tem sido visto como um entrave à política global de Saúde, de proteção do meio-ambiente, de defesa democrática e de afirmação dos direitos humanos. No último 27, diplomatas vieram a público pedir a queda do ex-chanceler por contribuir com a aniquilação da imagem do país no exterior. Correto. Receber diretrizes políticas de um governo conservador faz parte do jogo, mas aceitar a estupidez pela estupidez é inadmissível. Tolerar que as peças do complexo tabuleiro da política exterior sejam pautadas por conspiracionismos infundados, orientações de desqualificados que posam de intelectuais debochando da capacidade de raciocínio dos demais ao redor é absolutamente repugnante e deletério para o país.
Apesar da relevância do manifesto, o que foi dito pelos diplomatas apenas expôs um problema que já se sabia iria acontecer desde antes da posse de Ernesto Araújo no cargo, quando começou a emitir opiniões projetando-se como fortíssimo candidato ao posto de pior chanceler do mundo, o que veio a consumar-se. Desde sempre estava escrito que o país só teria a perder com sua nomeação. Só não se sabia que perderia tanto, inclusive em vidas. Também por isso, nada de se aceitar saída honrosa para o imprestável que hoje deixa a cadeira ministerial. O Senado, em hipótese alguma, pode referendá-lo à frente de qualquer embaixada, caso o presidente da República ouse recomendá-lo. Se acontecer, que repita o que fez em dezembro do ano passado quando rejeitou a indicação de outro diplomata do núcleo delirante do Itamaraty para o posto de delegado permanente do Brasil em Genebra. O certo mesmo é que Ernesto Araújo seja responsabilizado pelas instruções criminosas que deu à frente do Ministério das Relações Exteriores.
A propósito, acompanhando o ex-chanceler na audiência no Senado estava um assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República, que provocou a indignação até do Museu do Holocausto por fazer gesto racista de grupos supremacistas durante a fala do presidente da casa. Este fato deve servir para que o Senado e as demais instituições vejam que o fundamentalismo na política exterior brasileira não brota do Itamaraty, mas do Planalto. É ali que os facínoras se escondem, é dali que traçam suas cruéis e inadmissíveis estratégias.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.