Na pandemia não podemos aglomerar por diversão, mas podemos apinhar no transporte público para trabalhar... Claro, seguindo todos os “protocolos”. Então, se só podemos aglomerar em trens e ônibus, que tal uma balada no transporte público? Uma bomba semiótica do tipo autoignição (de combustão espontânea) foi detonada pelo “Trem do Funk da Antiga”, flash mob em um vagão dos trens da Supervia, no Rio de Janeiro. Muita bebida, DJ e a maioria sem máscara. Mas com uma astúcia irônica que expôs a hipocrisia da cobertura midiática da pandemia: uma narrativa moralista na qual se expor no transporte público para trabalhar é moralmente mais correto do que para se divertir. Aglomerar para beber, dançar e ouvir música é ilegal porque não produz mais-valia, como em ônibus e trens apinhados diariamente levando gente ao trabalho. As massas não são nem sujeito nem objeto. São ardilosas. A comunicação da esquerda deveria aprender um pouco com essas bombas semióticas espontâneas.
No campo da democracia, o Iluminismo encontrou na figura de Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII, o grande porta-voz da soberania popular pela defesa da concepção da soberania pelo povo. O poder pelo povo cuja instância legitimadora seria a opinião pública, cuja dinâmica impediria a ingerência dos interesses privados nos assuntos públicos.
Mas então veio o século XIX e o fenômeno do surgimento das multidões e das massas que sacudiu a Europa no final daquele século com a urbanização e a metropolização. Para a então recém-criada Sociologia, a multidão-massa passou a ser vista como a antítese dos ideais racionalistas e democráticos iluministas: um fenômeno errático que flutuaria em algum ponto entre a passividade e a espontaneidade selvagem. Entre uma massa de zumbis pronta para ser hipnotizada por algum Estado totalitário ou um rastilho de pólvora à espera de ser aceso para levar a sociedade à anomia e ao caos.
Mas para os movimentos libertários socialistas ou comunistas, as massas conteriam um estoque potencial de energia à espera de ser liberada por movimentos revolucionários. Hoje, as massas podem ser apáticas e silenciosas, mas amanhã se tornarão protagonistas da História.
Nem uma coisa e nem outra. O niilismo gnóstico do pensador francês Jean Baudrillard via nas multidões a “maioria silenciosa” – a natureza das massas não estaria nem no engano e muito menos numa força catastrófica latente. Mas num silêncio que absorve o social (o Poder, a Política, etc.) através do cotidiano, pela banalidade dos problemas diários, pela gestão da rotina de sobrevivência.
Em seu pequeno texto “À Sombra das Maiorias Silenciosas”, Baudrillard descrevia como a Política, a Publicidade e o Jornalismo sempre viveram a ilusão de que as massas são receptoras, objetos de manipulações, informações, do jogo eleitoral, das ideologias, discursos ou retóricas.
Nem sujeitos ou objetos: haveria nas massas uma astúcia irônica, algum tipo de ardil universal, assim como os “primitivos” reciclavam moedas ocidentais em sua circulação simbólica de bens e dons – clique aqui.
Combustão espontânea
Talvez a massas da era moderna tenham herdado o habitus da vida medieval: camponeses ou habitantes de cidades totalmente alheios à nobreza ou a Igreja, cuidando da própria sobrevivência e amedrontados com as hordas bárbaras nômades.
Mas é na sociedade atual de intenso trânsito semiótico de sinalizações e informações (o contínuo atmosférico midiático) que essa astúcia irônica descrita por Baudrillard torna-se mais explícita.
E algumas vezes manifesta-se como uma bomba semiótica de combustão espontânea quando, assim como certos materiais podem entrar em autocombustão por oxidação ou fermentação, a intensidade da irradiação de signos pode elevar a temperatura de autoignição – criando acontecimentos de reciclagem irônica dos sinais e informações irradiados pela grande mídia.
Somente assim pode ser interpretada a verdadeira bomba semiótica de autoignição daquilo que a grande mídia tenta rotular como o “trem do funk”: através das redes sociais um grupo organizou um baile funk em um dos trens da Supervia, no Rio de Janeiro.
Através das imagens que circulam as redes sociais imagens do evento chamado de “Trem do Funk da Antiga” que teve DJ com aparelhagem de som, muita bebida alcoólica vendida por ambulantes e muitos “passageiros” sem máscara.
O flyer digital compartilhado nas redes marcava o ponto de encontro na plataforma 8 da Central do Brasil, por volta das 19h. A linha da rede escolhida pelos organizadores foi a do ramal Japeri, que saiu por volta das 20h15 da Central – clique aqui.
E onde está a ironia nisso tudo? Se assistirmos aos vídeos e tirarmos o áudio, teremos as mesmas imagens dos transportes públicos lotados durante a semana, com trabalhadores apinhados em trens, vagões e plataformas em pleno momento de supostas medidas restritivas de combate ao pior momento da pandemia – um verdadeiro “lockdown tabajara”.
Enquanto o governo federal nega tudo, dá de ombros e o presidente ainda caçoa de pessoas com falta de ar (clique aqui) e governadores e prefeitos batem cabeça em medidas erráticas, o jornalismo corporativo (como sempre) tenta passar pano em tudo, jogando raiva e ressentimento da população contra “funkeiros”, “baladeiros” e “DJs” em pautas moralistas: enquanto as autoridades municipais e estaduais “estão do lado da Ciência”, as massas ignorantes e “sem empatia” se esbaldam como se não houvesse amanhã.
Nada muito diferente da visão da caserna revelada pela fala do vice general Mourão de que “o povo não gosta de respeitar regras, é um povo libertário, gosta de estar circulando pelas ruas, gosta de fazer festa” – também, nada muito diferente do Positivismo de Augusto Conte que acabou criando a mitologia das massas selvagens e irracionais e fez a cabeça dos militares brasileiros.
Ora, por que aglomerar para beber, dançar e se divertir não pode, mas para ficar apinhado no transporte público, diariamente, para gerar mais-valia ao capital pode? A resposta está na própria pergunta.
Em postagem anterior discutíamos a atualidade da Teoria da Mais-Valia de Karl Marx na pandemia – os setores paralisados são aqueles que não produzem valor e mais-valia (o setor de circulação: comércio, prestação de serviços etc.), enquanto o setor do capital produtivo (gerador da mais-valia da qual são deduzidos todos os lucros da circulação comercial) deve se manter em funcionamento. Condenando os trabalhadores à contaminação em aglomerações diárias. Moralmente justificado: é para trabalhar, não para se divertir – sobre isso, clique aqui.
Bomba semiótica funkeira?
Os funkeiros criaram uma bomba semiótica? Certamente. Espontânea, ou de “autoignição”, confirmando a intuição de Baudrillard quanto ao ardil irônico das massas: se a grande mídia bombardeia de que não podemos aglomerar em festas e baladas e só podemos circular em trens e ônibus lotados, por que não fazer uma balada no único lugar permitido, um vagão de trem?
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**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.