Comunidade tóxica: como o capitalismo contaminou a cultura gamer – Por Raphael Fagundes

Fruto de um projeto de marketing, essa postura acabou por desenvolver um espírito antifeminista que serviu de massa para a ascensão da extrema direita

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O país ficou chocado quando o jovem gamer Guilherme Alves Costa assassinou a jogadora profissional de e-sports Ingrid Oliveira Bueno da Silva a facadas. Contudo, temos que compreender que este fenômeno não está isolado, mas sim totalmente relacionado ao capitalismo e à ascensão da extrema direita.

Desde a crise da Atari nos anos 1980, a indústria de games decidiu modificar seu marketing para a cultura dos brinquedos. De acordo com o sociólogo Jamie Woodcock, os executivos da Nintendo, “descobriram que ‘os meninos estavam jogando mais videogame que as meninas’... A venda e a propaganda dos jogos tornaram-se cada vez mais sexistas e um exemplo óbvio foi a decisão da Nintendo de nomear seu console portátil de “Game Boy".[1]

A opção de comercializar jogos para um nicho demográfico específico acabou por reproduzir estereótipos machistas, como o homem que salva a mulher indefesa, ou o sucesso de Lara Croft, personagem que tem os seios robustamente desproporcionais.

Na era dos jogos online esse processo se intensificou. Comunidades games foram criadas para promover competições. “O anonimato do jogo online, junto com fóruns associados, tem fornecido um local onde essa cultura tóxica pode crescer", explica Woodcook. Nessas comunidades, a trollagem agressiva se manifesta e “o xingamento é quase obrigatório”.[2]

Essa comunidade tóxica, fruto de um projeto de marketing, acabou por desenvolver um espírito antifeminista que serviu de massa para a ascensão da extrema direita.

Steve Bannon, empresário que ajudou na construção ideológica do governo Trump, desenvolveu a Internet Gaming Entertainment (IGE), uma empresa de mineração de ouro no World of Warcraft. Ela “empregava trabalhadores chineses para ganhar, executando tarefas repetitivas e mecânicas, dinheiro e itens no jogo, que seriam então vendidos a jogadores mais ricos, principalmente nos Estados Unidos”.[3]

Além de adotar um método capitalista possível apenas no mundo dos games, Bannon aproveitou a cultura antifeminista e discursivamente agressiva dos gamers para promover a extrema direita nos EUA. Joshua Green mostrou que Bannon se aproximou da comunidade gamer “para ajudar a recrutar exércitos online de trolls e ativistas que atacavam políticos do país e ajudaram na ascensão de Donald Trump".[4]

“O objetivo era mobilizar potenciais eleitores contra o que eles consideravam exemplos do ‘politicamente correto fora de controle’”, de acordo com uma matéria da UOL.[5]

Contudo, para além de todo este desastre, a história dos jogos eletrônicos teve origem na resistência e oposição. Trabalhadores recrutados para programar lançamentos de mísseis durante a Guerra Fria projetaram “diversões antitrabalho que tornaram-se os primeiros jogos eletrônicos”.[6]

Existe também o Game Workers Unite (GWU), o sindicato dos trabalhadores da indústria dos jogos eletrônicos. Uma “organização gerida exclusivamente por trabalhadores” com o objetivo de “conectar ativistas pró-sindicalização, trabalhadores explorados e aliados entre fronteiras e entre ideologias em nome da construção de uma indústria de jogos sindicalizada".[7]

O sociólogo Jamie Woodcock mostra que a principal forma de identificação entre estes trabalhadores é a cultura do videogame que, neste caso, em vez de ser usada para fins reacionários, visa a interação entre os trabalhadores.[8]

Por isso, é importante que a esquerda passe a se interessar pelos games, pois é preciso “politizar a arte". Jane McGonial concorda com o economista Edward Castronova sobre o fato de que está havendo um “êxodo em massa” para os espaços virtuais porque “o mundo real simplesmente não oferece com tanta facilidade os prazeres cuidadosamente elaborados, os emocionantes desafios e o poderoso vínculo social conquistado em ambientes virtuais".[9] Neste espaço se experimenta a sensação de poder, a emoção da vitória em equipe, e, sem dúvida, o senso de comunidade, elementos que no mundo real são exclusivos para um número cada vez menor de indivíduos.

Já existem jogos críticos, jogos marxistas, como o Tonight We Riot, no qual “explicitamente socialista, o jogador não comanda uma pessoa só, mas um movimento de trabalhadores contra o capitalismo a partir de ação direta: ‘enquanto um de nós sobreviver, a Revolução continuará’”.[10] A politização da cultura é de extrema importância para combatemos a proliferação virulenta do ódio da extrema direita e, quem sabe, para a construção de uma sociedade mais justa.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.


[1] WOODCOOK, J. Marx no Fliperama. São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 242-243.

[2] Id., p. 245.

[3] Id., p. 247

[4] Ibidem.

[5] https://www.uol.com.br/start/ultimas-noticias/2017/10/19/como-o-estrategista-chefe-de-trump-usou-videogames-para-espalhar-o-odio.htm

[6] WOODCOOK, J. op. Cit., p. 253.

[7] Id., p. 165.

[8] Id., p. 171.

[9] MCGONIAL, J. A realidade em jogo. Rio de Janeiro: Best-seller, 2012, p. 13.

[10] GROHMANN, R. Games como laboratório da luta de classes. In: WOODCOCK, J. op. Cit., p. 13.