“Não vim trazer a paz, mas a espada…
Vim pôr fogo sobre a Terra”
[Jesus Cristo, apud Mateus e Lucas]
Vivemos um tempo de crise generalizada: política, econômica, sanitária, ética. No plano internacional, desde 2008 a crise econômica mundial mostra sua evidente face estrutural (desemprego crônico, desastre ambiental, fome crescente), agravada agora por um dos resultados da industrialização irracional: a pandemia do coronavírus.
No plano brasileiro, porém, é que o conceito de irracionalidade pode ser observado com clareza e nas mais diversas instâncias. Nesta nação instável e desagregada – em que as elites optam recorrentemente pela irracionalidade de fascistas para conter quaisquer mínimos avanços de reformas sociais –, vemos hoje o drama desta opção pela ignorância política, ética, econômica e social.
A falta de um projeto nacional – racional – das classes dominantes (“castas” ultraprivilegiadas que jamais deixaram o poder, embora tenham cedido o governo por pouco mais que uma década) fez com que a economia brasileira despencasse.
Brasil: o gigante tombou
Sob a presidência genocida de Jair Bolsonaro e seu “Chicago boy”, o banqueiro Paulo Guedes, no Ministério da Economia, de acordo com dados do FMI, o país em 2020 caiu para o 12º lugar na classificação das maiores economias do mundo, sendo ultrapassado por países como Canadá, Coreia do Sul e Rússia.
Voltamos ao nível dos idos de 2002, época do fim da agonia neoliberal imposta à nação pelo moribundo, hoje arrependido, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em que o Brasil ocupava a 13ª posição dentre as economias mundiais, conforme números do Banco Mundial e FMI.
Diferença gritante do status alcançado durante os governos nacional-desenvolvimentistas de Lula e Dilma Rousseff, quando o país chegaria a ocupar o 6º lugar dentre as economias do planeta (em 2011), à frente de potências como o Reino Unido (vide matéria da BBC sobre estudos do instituto inglês “Centre for Economics and Business Research”).
O monstro criado pela mesquinhez
Com medo do monstro que criaram, o que se vê agora entre as classes privilegiadas é uma crescente debandada – até mesmo por parte dos senhores da indústria e agronegócio, que em grande medida financiaram o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma.
Golpe de estado, que – hoje já está comprovado com todas as letras e áudios –, foi conduzido por juízes vendidos ao estrangeiro, parlamentares terraplanistas (bancada bala-boi-bíblia), militares antinacionais (zumbis de 1964 que não morrem) e outras personagens de filme de terror.
Toda essa salada de loucos, é claro, sempre bem-apresentada em finas toalhas de renda aos ouvidos diários da opinião pública – martelados pelas corporações midiáticas “unidimensionais”. Em seus editoriais cuidadosamente adornados, as grande irmãs Folha, Estadão, Globo, Abril – conhecidas como PIG – não se envergonham de continuar a ser porta-vozes do atraso nacional (e nisto sim somos campeões do mundo).
Porém, o fato é que grande parcela das classes abastadas também perdeu (ainda que menos do que o povo) neste movimento de aceno ao fascismo; perderam competitividade e poder de investimento.
O fascismo, como se sabe (e eles sabiam quando apostaram nisso), por seu próprio apelo ao inconsciente – ao ódio dos impotentes, às frustrações existenciais e conjunturais, à vingança contra o diferente, o outro – o fascismo contém elementos irracionais que dificilmente poderiam ser adestrados.
Mas nesta tolice, ingenuamente acreditaram os teóricos do projeto “Bolsonaro domado”. Para os chefões do mercado, o animal irracional, o capitão-fantoche construído para terminar o trabalho sujo de Temer, apesar dos pesares, passaria as antipopulares contrarreformas (da Previdência, Tributária, etc.) pela goela da nação, e isso não causaria tanto prejuízo ao “discurso neoliberal moderado” – que tucanos e comparsas da “direita-mais-racional” tinham como primeiro plano (se não houvesse o voto…).
Este erro político crasso foi também erro econômico e a queda tem sido dura até para a camada patronal. O cenário adverso só não chegou mesmo para umas poucas dezenas de famílias – as mais ricas do país – que, dada sua imensa vantagem no “jogo de poder” (mercadológico) acabaram lucrando, e bastante, com a desgraça nacional.
É caso para se refletir – com muita atenção – isso de que somente durante a crise do coronavírus, a riqueza de 42 bilionários brasileiros tenha aumentado aproximadamente R$ 177 bilhões (de acordo com recentes dados da Oxfam, notícia que de tão escabrosa não pôde ser omitida sequer pela imprensa mais conservadora).
Já o outro lado da moeda é visível a qualquer um que se aventure pelas ruas das grandes cidades, ou pelos sertões do país: a miséria se agrava com velocidade descontrolada, fome, insegurança, enfermidades, trabalho precário, famílias inteiras jogadas às ruas; de avós a bebês “atrapalhando o tráfego”.
Segundo pesquisas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a pandemia da Covid-19 levou ao infeliz recorde de 41 milhões de latino-americanos desempregados em 2020. Por sua vez, o Banco Mundial estima que, em nosso subcontinente, 50 milhões de pessoas caíram abaixo da linha da pobreza no ano passado.
A conta do caos: taxação de grandes fortunas é incontornável
No relatório da Oxfam, intitulado “Quem paga a conta? – taxar a riqueza para enfrentar a crise da Covid-19 na América Latina e Caribe”, a organização (que longe de ser socialista, é liberal-reformista) propõe que se ponha em prática duas antigas e importantes bandeiras das esquerdas: a de um sistema tributário menos injusto, “progressivo”, e ainda, a taxação de umas meia-dúzias de imensas fortunas.
Na nação-irmã argentina, também combalida durante anos por golpes jurídicos e midiáticos – mas hoje se reerguendo –, este (incontornável) debate sobre a taxação dos bilionários vem ganhando espaço e encaminhamentos.
Em dezembro passado, o Senado do país aprovou uma lei chamada de “Contribuição solidária e extraordinária para amenizar os efeitos da pandemia”. O gesto, embora paliativo, pode ser um embrião de uma lei futura que vigore de modo permanente, corrigindo minimamente as violentas arestas do abismo social.
Por ora, a medida consiste em um pagamento único de taxa que varia entre 2% e 3,5% aplicada sobre patrimônios declarados maiores que 180 milhões de reais.
A iniciativa – que já existe em países industrialmente mais avançados – é das pioneiras na América Latina, mas chega em bom tempo. Nossa região carrega o fardo de ter os maiores índices de desigualdade social no mundo: o 1% da população mais rica detém 21% do patrimônio, enquanto os 40% mais pobres sobrevivem com só 13% (a menor parcela de todo o mundo, de acordo com dados do PNUD).
No Brasil, segundo estudo da CEPAL (Panorama Social da América Latina, 2019), o índice é ainda pior: o 1% de mais ricos detém 28% do total da renda nacional.
A nova lei argentina atingirá tão somente as 10 mil pessoas mais ricas do país (conforme matéria do Brasil de Fato). Com esse imposto pontual, o governo progressista vizinho estima captar 3,5 bilhões de dólares, verba a ser destinada em parte a moradores de bairros populares (15%); a equipamentos médicos para combater a Covid-19 (20%); e a programas de incentivo econômico para estudantes (20%).
Entretanto, não só ao combate da pobreza destina-se o projeto. Também as influentes vozes do empresariado e da indústria conseguiram seu quinhão, e se beneficiarão de boas parcelas desta lei (ainda frágil e falha), na forma de subsídios a pequenas e médias empresas (20%), e à produção estratégica de gás natural (25%).
Brasil de joelhos
Mas o avanço argentino não deixa de ser um começo de luz neste sombrio quintal latino-americano que agoniza, muito embora no Brasil as coisas devam ser mais difíceis – sob a jurisdição de nossa burguesia antinacional e campeã em estupidez.
Recordemos que em meados do primeiro governo Lula, quando setores da esquerda começaram a pressionar pela taxação de imensas fortunas, em um movimento quase-sincrônico, os porta-vozes da elite (sobretudo as quatro irmãs PIG) começaram a plantar na opinião pública a ideia de que o PT praticava uma corrupção “sistemática e regular”, apelidada jocosamente de “mensalão”, mas cujos “depósitos regulares” jamais foram verificados em conta nenhuma.
Na época, só não derrubaram Lula devido a sua enorme popularidade – popularidade que em parte se mantém, apesar dos ataques que sofreu. E que, aliás, ainda assusta as corporações midiáticas e os demais sócios do “mercado”, como se vê no discurso de “nova polarização” que assoma certos “editoriais”, desde que se tornou público que a Lava Jato não passou de uma armação criminosa, apoiada por interesses econômicos estratégicos de superpotências estrangeiras.
Fogo na Terra
Na Argentina tampouco a vida será fácil. Com a aprovação da nova lei, a oposição conservadora partiu para cima da ala governista (kirchnerista) – acusando o imposto de “confiscatório”, e iniciando uma guerra jurídica.
Enfim, como se sabe, não é tarefa simples mudar os caminhos mais tortos da História, cujo andar é dialético, e se move justamente a partir dos conflitos, das necessidades, da força e do sangue das ruas.
Assim seja. Como já dizia um certo Jesus: “Não vim trazer a paz, mas a espada… Vim pôr fogo sobre a Terra”.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.