Mais uma vez o Brasil foi esnobado e nosso cotadíssimo e muito elogiado filme “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, não recebeu nenhuma indicação. É curioso como a Academia do Oscar sempre foi bastante corporativista e auto-indulgente... Não à toa, parece que a palavra que ela mais ama é a metalinguagem: ou seja, falar de si mesma.
Os votantes da premiação adoram filmes que versam sobre os bastidores da própria indústria, que fazem críticas irônicas sobre suas próprias idiossincrasias, como uma serpente que se engole pelo rabo, e rejeitam tudo que esteja fora disso... Mas estariam escutando a si mesmos? Ou ecoando no vazio?
Há de exemplo o filme “Mank”, de David Fincher, produzido pela Netflix, contando outro ponto de vista um pouco controverso sobre a realização do clássico “Cidadão Kane”, de Orson Welles, com o maior número de indicações este ano (10), pois é uma das obras mais faladas e também uma das maiores decepções. Ou seja, no fim das contas, a estatueta dourada jamais escuta suas próprias críticas e acaba não mudando a sua couraça, que permanece a mesma. Na verdade, só se endurece cada vez mais...
E ainda estamos enfrentando alguns obstáculos a mais com a pandemia, como a indiferença das pessoas em relação a esta temporada de premiações, o que em parte é reflexo de uma indústria que já estava saturada e pouco representativa, ao mesmo tempo em que isso pode ser péssimo para a própria cultura...? Por quê? Sim, há uma exaustão das pessoas pela clausura online, a que muitas estão condicionadas devido à necessidade de distanciamento social e home office, pelas altas curvas de contaminação atuais.
Apesar de muitos filmes estarem disponíveis no streaming, são tantas opções que as pessoas ainda não se acostumaram com uma curadoria puramente online, sem ajuda de festivais e mostras, sem esquecer que os filmes a estrear apenas no circuito comercial de salas de cinema não estão sendo vistos, porque muitos não se sentem seguros ainda de compartilhar uma sala fechada e confiar no filtro do ar condicionado de salas que nem recebem infraestrutura devida de verbas públicas – culpa também do desmonte de políticas públicas voltadas para a cultura.
Então, apesar de muitas opções, como criar identificação com esta temporada? E olha que devido aos cinemas fechados em 2020, o Oscar foi até obrigado a ceder suas regras e aceitar indicações para filmes que estrearam unicamente pelo streaming – lembremos que a Academia é um reconhecimento de prestígio, calculado por seu efeito no circuito, pois não dá prêmio em dinheiro, e sim de valor simbólico. O que leva à pergunta de como qualificar o valor do que está na nuvem. Como traçar o resultado da identificação pelo infinito mundo de algoritmos e dados intangíveis?
A única forma possível de existir era refletir os anseios contemporâneos das demandas reprimidas em vozes e olhares plurais que desejavam se expressar afora da quarentena e do confinamento... E, em meio à expectativa geral de um padrão anual de filmes de mercado, geralmente dentro de uma conformidade estético-linguística representada pelos cineastas de sempre, havia muita promessa no ar.
Muitas pautas acumuladas dos anos anteriores, como o #OscarSoWhite e a cobrança por mais representatividade; ou a pauta do ano passado com “Parasita”, de quebrar a barreira de linguagem e reconhecer mais filmes estrangeiros nas categorias principais. E a mais recente questão da ausência de mulheres nas funções executivas principais, como direção, roteiro e fotografia (todos devem se lembrar do vestido de Natalie Portman em protesto em 2020, leia aqui). Este ano poderia ser revolucionário. Mas será que nem isso o Oscar conseguiu fazer direito?
Neste ano tivemos alguns recordes diferenciais, porém, como iremos discorrer, não vimos uma real mudança de postura estrutural... Sim, devemos provavelmente ter, enfim, uma segunda obra eleita como melhor filme e direção sob a batuta de uma cineasta mulher, “Nomadland”, de Chloé Zhao (com todo o mérito e as bancas de apostas apontando para ela, leia aqui). E isso após 11 anos da única vitória feminina nestas duas respectivas categorias até hoje, que foram para “Guerra ao Terror” e sua diretora Kathryn Bigelow em 2010.
Contudo, apesar de ter indicações pela primeira vez a duas mulheres na categoria de direção, para Emerald Fennel por “Bela Vingança” e para a própria Zhao, já supracitada, e valendo ressaltar que esta também é a primeira mulher não branca a concorrer, de origem chinesa e naturalizada norte-americana, ainda assim outra favorita para a categoria acabou não sendo indicada, que era Regina King, por “Uma Noite em Miami” (leia aqui) – e no Globo de Ouro as três chegaram a receber indicações.
Na história do Oscar, apenas cinco mulheres haviam sido indicadas à categoria de melhor direção até então: Lina Wertmüller, por Pasqualino Sete Belezas (1977); Jane Campion, por O Piano (1994); Sofia Coppola, por Encontros e Desencontros (2003); Kathryn Bigelow, por Guerra ao Terror (2010) e Greta Gerwig, por Lady Bird (2018).
Até houve outros números expressivos dignos de nota, como o fato de os atores Steve Yeun (“Minari”) e Riz Ahmed (“O Som Do Silêncio”), respectivamente, serem os primeiros descendentes de asiáticos e mulçumanos a concorrerem ao prêmio de ator – além de Chadwick Boseman (“A Voz Suprema do Blues”, leia aqui), em indicação póstuma, que se junta aos dois, totalizando três atores não brancos na categoria. E isso sem falar na primeira vez também que três atores negros foram indicados ao prêmio de melhor ator coadjuvante, Daniel Kaluuya e Lakeith Stanfield (ambos por “Judas e o Messias Negro”) e Leslie Odom Jr. (“Uma Noite em Miami”), ao mesmo tempo que Yuh-Jung Youn (“Minari”) foi a primeira sul-coreana indicada a melhor atriz coadjuvante. Por fim, Viola Davis tornou-se a atriz negra mais contemplada na história do Oscar, representada este ano na categoria de Melhor Atriz por sua performance em “A Voz Suprema do Blues”, chegando à quarta indicação de sua carreira.
No demais, a verdade é que o Oscar continua sendo extremamente conservador, como esnobando outras produções da temporada para além do nosso brasileiro “Bacurau”, como não só deixando de indicar alguns dos filmes supracitados nas categorias principais, e logo aqueles mais representativos e criativos em experimentação de linguagem afora do padrão, como “Uma Noite em Miami” e “A Voz Suprema do Blues”, como ignorando completamente outros, como “Destacamento Blood” de Spike Lee (leia aqui), “Malcolm & Marie” de Sam Levinson e “The Mauritanian” de Kevin MacDonald. E piora ainda mais quando pensamos no cenário das diretoras independentes, nem um pouco invisíveis nesta temporada após inúmeras láureas em Festivais Internacionais, como “Nunca Raramente, Às Vezes Sempre” de Eliza Hittman, ganhadora do prêmio do Júri em Sundance e Berlim (leia aqui) ou “First Cow” de Kelly Reichardt, campeã de esnobadas do Oscar, mesmo em outro dos melhores filmes do ano passado (confira aqui).
Com tudo isso, ainda é até surpreendente que eles tenham aceitado ao menos indicar ao prêmio de melhor direção um filme estrangeiro, “Druk”, do dinamarquês Thomas Vinterberg, cineasta também de clássicos como “Festa de Família” (1998) do movimento Dogma 95 e “A Caça” (2012), outra obra com o protagonista Mads Mikkelsen (mais um artista cotado para a categoria de melhor ator, porém que não conseguiu romper a barreira da linguagem, o que mais uma vez resultou numa obstrução).
E aí voltamos para o filme “Mank”, talvez o mais conservador dentre todos eles, ainda que de linguagem grandiloquente do que se espera de uma produção deste porte, com ares de cult artístico, pela fotografia em preto e branco, a revisitação de uma era clássica, os facilitadores de um modo de fazer cinema em que tudo acontecia na hora certa e encantava. Quando a dupla principal do filme caminha debatendo quase num flerte ambíguo, fatidicamente precisa aparecer um chafariz e subir a lua cheia, quase de forma onírica, para materializar a tensão sexual que personagens de sexos opostos são obrigados a sentir, especialmente quando negociam posições de poder nesse estereótipo estilístico...
Tudo é fake. O que não seria um problema se o clima farsesco fosse assumido pelo filme e não se levasse a sério. O ponto é justamente o contrário, pois o maior pecado da obra é fingir que faz uma crítica ao sistema, fitando que fará jus a uma figura histórica que teria sido injustiçada pelo sistema. No entanto, isto é uma falácia. Ao vitimizar a figura do protagonista, o roteirista Herman Mankiewicz (ou chamado por seu apelido, “Mank”, título do filme), e alfinetar de certa forma irônica o cineasta histórico Orson Welles, o que o roteiro acaba fazendo é hostilizar um modo de produção que era extremamente independente e revolucionário (representado por Welles) e, por fim, reafirma o mesmo sistema que o clássico “Cidadão Kane” desejava criticar.
Toda esta celeuma se dá por causa de duas correntes históricas, que talvez o leitor desconheça caso ainda não tenha assistido aos dois filmes mencionados, ou lido qualquer outra coisa sobre o assunto. Não que precise se ter uma bagagem prévia para entender a nova obra em foco, mas isso quer dizer sim, que há nuances passíveis de passar despercebidas para quem não conheça um pouco mais do que se trata. É um longa-metragem voltado muito mais para a cinefilia, na hipótese de se querer degustar tudo o que ele possui a oferecer.
O roteiro foi escrito há mais de dez anos pelo pai do diretor, o já falecido Jack Fincher, ou seja, num tributo póstumo. Esse olhar saudosista e de afetos do filho, o premiado David Fincher (de cults como “O Clube da Luta” e “A Rede Social”), não comunga da mesma intenção original de quem escreveu o projeto, já que Jack vinha de uma era em que ainda era socialmente aceitável hostilizar o também saudoso Welles, cuja postura anárquica perante a indústria de Hollywood ainda não tinha voltado às graças de Hollywood – o que hoje voltou a consagrar obras-primas que vão muito além de apenas “Cidadão Kane” (1941), mas perpassando outras pérolas como “A Marca da Maldade” (1958) e “O Processo” (1962). Um homem que fez seu próprio modus operandi, contra tudo e contra todos e que o sistema temia muito, pois poderia significar a ruína de todo um modo de fazer estabelecido.
Quando Jack escreveu seu roteiro, ele se filiava a uma corrente que já foi defendida por outros nomes grandes, como a crítica e escritora Pauline Kael, que cunhou um artigo destruidor chamado “Criando Kane”, onde usava de toda a sua verve e conhecimento técnico de cinema para destrinchar meticulosamente sobre como “Cidadão Kane” seria uma obra-prima por causa de seu roteirista Mankiewicz e não por mérito de Welles. O que esse artigo outrora renomado ignora é que Orson também ocupou muitas outras funções no filme, como ator/protagonista e diretor, além de supervisionar várias outras de perto, como direção de atores e artistas não profissionais do elenco, bem como a fotografia e montagem. E esta expertise se demonstra e se comprova em outros de seus exemplares com esmero, como os já retro mencionados nesse texto. Não podemos creditar o sucesso do clássico aqui na berlinda apenas pelo roteiro de Mank...
Decerto é bastante interessante acompanhar as desventuras de Mankiewicz no meio dos ricos e poderosos pelos quais ele transitava e que decerto serviram de fonte inequívoca para o roteiro se tornar a obra-prima que se tornou. Existe ali uma boa sacada em metalinguagem sobre o império verídico do magnata da imprensa William Randolph Hearst, dono de vários jornais, e adaptado na ficção para o alter ego denominado Kane... Até a mansão cheia de animais exóticos estavam lá, e são reproduzidos, inclusive, no filme de Fincher. Todo este cabo de força com os podres poderes do sistema de fato foram trazidas em especificidades por Mank, uma vez que, possivelmente, Welles não teria tido o tato de reproduzir aquilo que ele desconhecia – ou mesmo a audácia de trair confidências de amizades que não eram deles, e sim do “outro” roteirista.
“Cidadão Kane” é tudo isso, sim. E muito mais. Algumas coisas vindas de Mankiewicz, porém outras igualmente foram provenientes de Orson Welles. O conhecimento jornalístico de certa forma já existia no diretor do filme, pois ele passou por várias funções prévias como até radialista antes disso. Existia ali um conhecimento próprio de meios de comunicação dissecados ali que vinham de outras fontes que não apenas as do magnata Hearst. E a estrutura narrativa genial também foi bastante modificada pela direção desde o primeiro tratamento de roteiro, onde este foi reescrito algumas várias vezes.
Há uma entrevista exclusiva que Welles deu pouco antes de morrer para o colega cineasta/ator Peter Bogdanovich em que ele não deixa de dar todo o crédito devido a Mank, como explica e demonstra quantas vezes alterou o material original em desenvolvimento da mise-en-scène antes que chegasse em sua versão final (confira aqui). E de fato há decisões executivas muito originais, como a montagem jornalística inicial que faz um perfil póstumo do magnata falecido na primeira cena do filme, e que vemos como se fosse uma notícia documental extremamente formalista – afora da linguagem de ficção. E isto era um transbordamento dos cinejornais que na década de 30 e 40 precediam os filmes na telona, e muito antes da televisão. Ou mesmo a vanguarda estética da progressão não linear da história, que é composta por entrevistas feitas por um investigador que jamais aparece diretamente, somente de soslaio, na sombra... E que levam a flashbacks da memória daqueles envolvidos com Kane, cada um por sua vez contando fragmentos de um grande quebra-cabeça subjetivo e perspectivista... Algo que vai gerar a catarse com o único elemento do passado que ainda humanizava Kane, a famosa palavra “Rosebud”, que aparece na última cena do filme e nos remete à cena do início ainda na infância pura e com tudo pela frente, e que só pode ser ressignificada quando se assiste de novo à obra, já consciente do final.
E o longa-metragem “Mank”, de David Fincher, se constrói da mesmíssima maneira, quase cópia carbono quatorze, desta vez colocando Welles a princípio como o investigador da obra-prima original, quase não aparecendo de modo frontal, apenas de perfil e na penumbra, bem como estruturando as lembranças de Mankiewicz num vai e volta de flashbacks que perpassam suas experiências em Hollywood e nas festas dos poderosos, como Hearst, e a espinha dorsal do filme narrando o roteiro para uma datilógrafa (Lily Collins) enquanto se recupera de um acidente que o deixou acamado. A datilógrafa realmente existiu, está mencionada até no artigo de Pauline Kael, mas talvez tenha sido uma boa estratégia do filme em potencializar a interlocução não só com ela, como com outras personagens femininas fortes que muito inspiraram Mank também, como sua esposa (numa interpretação emancipatória de Tuppence Middleton). – Tudo numa roupagem bem bonita plasticamente pelo olhar experiente de Fincher...
Infelizmente, o arcabouço de “Mank” não é nem um pouco inovador. Estava todo lá, no roteiro de Mankiewicz e Welles, e na direção deste também. Mal dá para dizer que é uma homenagem de Jack Fincher, já que o esqueleto esquemático não agrega nada novo e nem chega a uma catarse poderosa para poder se ampliar o material original para além da genialidade que já continha. Não trouxe algo inovador no olhar para o passado, já que o tema do “revisionismo histórico” é o tema central que atravessa a maioria das obras indicadas ao Oscar neste ano. E não estamos falando de biografias, pois nenhuma das obras contempladas desenha um retrato histórico de suas personagens, e sim revisita pontos de vista invisibilizados dos mesmos, redimensionando seus impactos no espaço-tempo. Nem para isso o filme com o maior número de indicações desta edição da Academia conseguiu servir, para representar o velho glamour ressignificado para a possibilidade de uma nova “Era de Ouro”... Só pareceu um velho fantasma conhecido que bateu na porta para dizer que as mudanças precisam tirar ainda alguns esqueletos do armário para acontecerem de fato.
O Oscar 2021 possui outros exemplares muito mais fortuitos dentro do tema do revisionismo histórico, que revê acontecimentos verídicos sob óticas outrora apagadas historicamente, seja com toques ficcionais ou não, como os bastidores dos Panteras Negras ("Judas e o Messias Negro"), a mãe do blues ("A Voz Suprema do Blues"), racismo na indústria do entretenimento ("Uma Noite em Miami"), a dama do Jazz (“The United States Vs Billie Holiday”) e os protestos contra a Guerra do Vietnã ("Os Sete de Chicago"). Mas as 10 indicações de “Mank”, e que provavelmente ainda vai sair de mãos vazias (exceto por uma ou outra categoria técnica), querem dizer muito de como ainda funciona o animus da Academia, que desperdiça alguns reconhecimentos burocráticos ao invés de abraçar verdadeiramente a revolução.
Caso queira conferir a lista completa de indicados ao Oscar 2021, confira aqui e maiores comentários e apostas aqui.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.