Por Carlos Eduardo Landim*
Mais uma vez, a América Latina volta a ser palco de reivindicações populares massivas que se levantam contra a catástrofe social que se intensifica na região, com a ausência de medidas eficazes contra a pandemia, o aumento notável do pauperismo entre os setores mais vulnerabilizados da população e a violência institucional endêmica levada a cabo pelos governos e forças de segurança. A pobreza e a extrema pobreza alcançaram no ano de 2020 níveis que não foram observados nos últimos 12 e 20 anos, respectivamente. Além disso, observa-se uma piora significativa dos índices de desigualdade na região e nas taxas de ocupação no mercado de trabalho na América Latina, segundo relatório anual recente publicado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). As manifestações iniciadas no último dia 5 contra os governos no Chile e no Paraguai, as quais encontraram forte repressão policial, ilustram o retorno da América Latina a uma situação de forte embate político e evidenciam de forma cristalina os problemas comuns do continente.
Chilenos retomam protestos contra o governo Piñera a um mês da Convenção Constituinte
No Chile – país em que os protestos de 2019 foram capazes de alterar significativamente a correlação de forças com a recente aprovação do plebiscito constitucional – os levantes sinalizam o contínuo esgotamento político do governo Sebastián Piñera. A despeito da pandemia não ter cessado as mobilizações populares no ano de 2020, como ocorreu em outros países, em fevereiro de 2021 as manifestações foram retomadas com maior intensidade após um novo caso de brutalidade policial em que carabineros (instituição de polícia ostensiva do país) mataram a tiros um malabarista nas ruas de Panguipulli, na frente de diversas testemunhas. Na ocasião, manifestações pedindo a punição dos responsáveis foram convocadas na cidade e prédios foram incendiados. Apenas depois do ocorrido a Justiça determinou que o policial acusado de matar o artista fosse detido.
Na semana em que o episódio completou um mês, manifestantes foram à Plaza Baquedano, em Santiago, epicentro dos protestos de 2019 contra o governo de Sebastián Piñera. Seguindo o rito inaugurado em 2019 de derrubada de monumentos históricos que faziam alusão a figuras reacionárias, os manifestantes atearam fogo na estátua do general Manuel Baquedano, personagem histórico da Guerra do Pacífico (1879-1884), que opôs o Chile às forças conjuntas da Bolívia e do Perú com o objetivo principal de controlar parte do deserto de Atacama, rico em recursos naturais. A figura do general também é responsável pela ocupação de territórios Mapuche (indígenas que habitam a região centro-sul do Chile) e crime de genocídio no sul do país. O confronto entre os manifestantes e carabineros deixou um saldo de 63 detidos e 7 feridos.
O retorno das manifestações ocorre em um momento crucial da história do Chile. No dia 11 de abril, a população irá votar os 155 membros que terão a tarefa de formular a nova carta magna do país. Das ruas, ecoa o anseio de superação de uma constituição herdada de um passado assombroso e sanguinolento e o objetivo de construir uma alternativa que seja capaz de aprofundar a democracia, substantivando-a sob a ótica das classes subalternas. Apesar disso, a um mês da eleição da assembleia constituinte, permanecem os impasses e o confronto entre as forças que pretendem realizar tímidas mudanças na constituição e aqueles que almejam construir alternativas reais ao fundamentalismo neoliberal chileno.
Projeções constatam que nem a base governista nem a oposição serão capazes de alcançar os dois terços necessários para a aprovação do novo texto constitucional. Todavia, o fato da coalizão governista ter chegado a um acordo que registrou diferentes partidos na lista única Chile Vamos, que agrupa o União Democrática Independente (UDI), Evolução Política (Evópoli), Partido Regionalista Independente (PRI) e o Partido Republicano, permitiria obter cerca de 60 lugares na Convenção. A oposição encontra-se fragmentada em duas coalizões principais, a Unidade Constituyente e Apruebo Dignidad, que devem ocupar, respectivamente, o segundo e o terceiro lugares da Convenção, com projeção de 44 e 27 cadeiras.
Em texto recente publicado neste blog, sustentei que o interregno chileno apontava para duas saídas possíveis. A primeira, sustentada pelos beneficiários do atual estado de coisas, seguiria a lógica do famoso lema do escritor italiano Giuseppe Di Lampedusa, segundo o qual “algo deve mudar para que tudo continue como está”, ou seja, realizar tímidas mudanças na constituição mantendo o núcleo duro que promove a mercantilização de todas as instâncias da vida social. A segunda, que consistiria em uma mudança radical no modelo democrático vigente, dependeria da manutenção das forças de mobilização. A um mês da eleição dos constituintes, pode-se dizer que, apesar dos prognósticos não serem otimistas para os setores oposicionistas, a retomada dos protestos atua como variável fundamental no jogo político e pode ser crucial para a construção de uma alternativa efetiva que coloque a maioria da população como protagonista.
Paraguai se levanta contra Mário Abdo e possibilidade de impeachment retorna ao horizonte
No Paraguai, protestos contra o atual governo de Mário Abdo Benítez também ocorreram na última sexta-feira e foram duramente reprimidos pelas forças policiais, deixando um saldo de um morto e ao menos 20 feridos, entre civis e policiais. O motivo dos levantes foi o descontrole da pandemia no país e a falta de vacinas contra a Covid-19. Apesar de ter sido um dos melhores países no trato da pandemia no primeiro semestre de 2020, o Paraguai soma fracassos recentes nas medidas de combate ao vírus e já contabiliza mais de 3.278 mortes e 168.000 contagiados. Além disso, o país, até o momento, conta com menos de 0,1% da população vacinada, o menor índice dos países do Cone Sul.
O estopim das mobilizações ocorreu após a renúncia do ministro da saúde, Júlio Mazzoleni, em meio à crise de abastecimento de medicamentos e insumos fundamentais para o tratamento de Covid-19. Os protestos indicam que a população clama pela queda do atual governo e por uma gestão da crise que garanta as necessidades básicas para os setores mais atingidos pela pandemia. A repercussão dos protestos chegou a preocupar o governo brasileiro, grande aliado de Benítez, pois segundo membros do governo Bolsonaro, uma eventual troca no poder poderia significar uma desestabilização na região. Para compreender a frágil situação de Mário Benítez, é necessário levar em consideração o trajeto político percorrido pelo presidente, que em 2019 foi alvo de um processo de impeachment que quase o retirou do cargo e atualmente o faz hipotecar suas esperanças políticas em Horácio Cartes, seu adversário político declarado.
Eleito em 2018 pelo Partido Colorado, Mário Abdo Benítez, filho de um dos homens mais poderosos da ditadura militar paraguaia (1954-1989), é o continuador de uma longa hegemonia de seu partido por mais de sessenta anos no poder. O pequeno hiato representado pelos anos de governo do ex-presidente Fernando Lugo (2008-2012), no bojo dos governos progressistas na região, não abalou a hegemonia do partido. Enfrentando fortes resistências da oposição desde o início do mandato, o governo chegou perto de ser destituído após um escândalo na negociação com o Brasil sobre a energia elétrica de Itaipu. Na ocasião, o presidente paraguaio assinou um acordo com Jair Bolsonaro que praticamente cedia a soberania energética do Paraguai ao Brasil.
O Tratado de Itaipu estabelece que cada país tem direito a 50% da energia produzida na hidrelétrica. Como os brasileiros demandam mais energia que os paraguaios, a energia produzida na fronteira paraguaia é vendida a preço de custo, acrescida de uma tarifa de compensação. Com o acordo assinado por Benítez, o Brasil passaria a pagar menos pela energia excedente do Paraguai, impondo ao país um prejuízo calculado em 200 milhões de dólares. Esse acordo foi o grande responsável pelo aumento significativo de sua rejeição, que chegou a 80% e fez com que fosse apresentado um pedido de impeachment contra o presidente.
Quando esteve à beira da destituição, seu governo foi sustentado por Horácio Cartes, ex-presidente e atual senador vitalício que dirige grande parte da bancada Colorada na Câmara dos deputados e no senado, com um controle da bancada jamais visto desde a ditadura de Alfredo Stroessner. Apesar de construírem o mesmo partido, Mário Abdo e Cartes são adversários políticos declarados e compõem alas opostas dentro da legenda. Se é verdade que houve uma aliança temporária entre ambos na defesa da manutenção de Benítez no poder, nada garante que essa posição permaneça num futuro processo de impeachment por conta da crise sanitária e das manifestações crescentes nos últimos dias. Ao contrário disso, evidências indicam um apoio de Cartes aos protestos e existem rumores não comprovados de que o ex-presidente possa estar envolvido em uma conspiração que favoreceu a crise para abalar o atual presidente, pois alguns hospitais onde faltam insumos e remédios são comandados por pessoas próximas a Cartes. De todo modo, para consolidar um impeachment, são necessários 53 votos de um total de 80 cadeiras na Câmara, sendo que Cartes tem 47 sob seu domínio. No senado, são necessários 30 votos de um total de 45, sendo que o Partido Colorado (com forte influência do setor de Cartes) tem 18 mandatos.
Apesar da incerteza do futuro e de um presente marcado por uma conjuntura de acirramento latente das contradições do governo no momento de maior agravamento da pandemia, não são “aventureiras” as previsões que preveem a destituição num futuro próximo do atual presidente. A questão-chave é se o sucessor de Mário Abdo será capaz de atender satisfatoriamente às demandas de uma população cada vez mais empobrecida e com altos índices de contágio e mortes por Covid-19. Mais uma vez, o termômetro serão as reivindicações organizadas dos setores que se manifestam continuamente desde o dia 5 de março.
O significado dos protestos para a América Latina
Apesar das especificidades das dinâmicas enfrentadas por cada país, as determinações gerais da história colocam os países latino-americanos sob um drama compartilhado, guiado pelo denominador comum de serem países periféricos moldados pela contínua concentração de poder político e exclusão dos setores populares da participação nos rumos da vida pública ao longo da história. Ainda que não exista uma articulação transnacional evidente entre as movimentações em ambos os países, a semelhança fundamental gira em torno da negação de governos que promovem abertamente a violência institucional, precarização da vida e falta de participação popular. Nesse sentido, se é verdade que a conjuntura que se desdobra é fruto da interação de determinantes estruturais e conjunturais, deve-se atentar para os fatores que compatibilizam demandas que abarcam também outros países da América Latina e que podem ser futuros polos de fortes mobilizações.
*Carlos Eduardo Landim é graduando em Relações Internacionais na PUC-SP e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum