“Eu sou radical, porque quero ir à raiz dos problemas deste país”. Essa é a mensagem do presidente Lula que a esquerda precisa seguir com mais afinco e, definitivamente, deixar de apenas discutir a pauta que a mídia apresenta.
A crítica proveniente das grandes corporações midiáticas tem como objetivo fazer com que críticas mais contundentes e radicais não se propaguem.
Esse é um procedimento que sempre foi adotado por estes conglomerados. A direita, nos últimos anos, buscou adotar uma crítica radical e virulenta a partir da crítica midiática, parindo a partir daí o ódio ao politicamente correto, o culto à ditadura militar, etc.
A mídia sempre faz a pauta e a população a discute. Sempre buscou impedir que discursos antissistêmicos, ou melhor, antiliberais, se espalhassem pela sociedade. Para tal, manipula a indignação. Determina o que deve ser odiado, o que deve ser contestado, etc.
Ela usa o seu exército de jornalistas, sociólogos e economistas de aluguel para contribuir na formação da crítica convencional, da crítica que tem como objetivo manter as bases liberais da economia capitalista.
Faz trabalhos sociais, promove campanhas sociais e coloca ao vivo a indignação de populares, mas tudo é planejado para que essa ira seja conduzida conscientemente, impedindo uma explosão antissistêmica.
O deputado Daniel Silveira e o apresentador Danilo Gentili, por exemplo, criticam o Congresso, o STF, a partir dos instrumentos disponíveis em seu círculo reacionário que fornece ferramentas (palavras, gestos, etc.) para a construção da formação discursiva da extrema direita. Eles apresentam o ponto de vista tóxico e troglodita da política. Por que a esquerda não critica as notícias fornecidas pela mídia a partir do ponto de vista da classe trabalhadora? Onde estão os elementos da formação discursiva da esquerda?
Não há como negar o fato de que a grande mídia tem repórteres e recursos, contatos e conchavos para poder acessar informações que a mídia de esquerda não tem alcance. O problema desta é seguir a pauta, falar de temas que nada tem de útil para a luta de libertação proletária. BBB, piadas do presidente da República, rumores de impeachment, brigas entre atores, tatuagens anais, entre outros, criam debates entre a esquerda desperdiçando energias que deveriam ser canalizadas para a construção de um ponto de vista da classe trabalhadora acerca da exploração do capital.
Os mesmos temas discutidos nas mídias liberais são discutidos nas mídias e por personalidades da esquerda. E, na maioria dos casos, com interpretações similares (defesa da democracia, anticorrupção, denúncia do grotesco bolsonarista...).
A imprensa se sente confortável, pois consegue manipular o debate. A mídia tradicional tem mais medo da extrema direita que da esquerda. Isto porque a extrema direita usa os seus elementos endógenos para a interpretação da notícia e, em muitos casos, forjam a sua própria notícia (fake news frequentemente) para combater as informações provenientes da grande imprensa. Mesmo sendo de péssima qualidade, a extrema direita produz um discurso autônomo. A esquerda, por sua vez, na maior parte das vezes, apenas comenta, de forma educada e disciplinada (nos moldes liberais), os discursos produzidos pela burguesia midiática. É só observarmos as colunas de Marcelo Freixo e de Guilherme Boulos nos jornais de grande circulação, e até mesmo em suas redes sociais. Não é um discurso tão diferente dos de Miriam Leitão ou dos de Guga Chacra (porta-vozes do liberalismo). Deste modo, as corporações midiáticas têm a esquerda em suas mãos por conta da docilidade da mesma.
Isso está relacionado à ideia de “ocupar espaços”. A esquerda acha necessário penetrar nos veículos de comunicação tradicionais para poder disseminar seu discurso. Vemos um intelectual do porte de Cristian Dunker proferir na CBN (sobre o BBB) e nos outros canais da Rede Globo um discurso contido. Trata-se de um embuste. Para falar é preciso obedecer regras. É o básico da filosofia da linguagem para quem leu Wittgenstein. A esquerda só fala nestes veículos à medida que obedece o jogo que deve ser jogado, isto é, não ser radical, não ser por essência de esquerda. A extrema direita quando deixou de jogar o jogo, ascendeu-se.
Marx e Engels acreditavam que a união da classe operária seria facilitada “pelo crescimento dos meios de comunicação que são criados pela grande indústria e que colocam em contato os operários de diferentes localidades”. E que a burguesia não havia assegurado as condições que pudessem dar continuidade à existência servil do proletariado, por isso ela seria “incapaz de continuar por muito mais tempo sendo a classe dominante da sociedade”.
Hoje sabemos, desde os estudos de Adorno, que os meios de comunicação, principalmente os criados pela “grande indústria”, agem não para unir os operários, mas para separá-los através da venda de sonhos inalcançáveis, assegurando a reprodução das relações tradicionais de produção.
A indignação manipulada
É importante ter em mente que a Globo tem duas formas de passar uma mensagem (muito similar ao modelo midiático norte-americano). Através da TV aberta e de jornais como Extra, Meia-hora e as edições dos telejornais locais busca-se um nível regular de imparcialidade.
Em contrapartida, a mensagem transmitida através da TV fechada (Globo News), do jornal O Globo (devemos incluir aqui o Jornal Nacional, embora seja da TV aberta), e da rádio CBN é muito mais carregada de parcialidade. Esses últimos veículos têm como consumidor a classe média, sendo esta o grande alvo para o qual essa mídia dispara seu interesse ideológico. É esse grupo que precisa “pensar” e, por isso, ter o pensamento moldado. O “povão”, por seu turno, deve estar condenado ao seu trabalho pesado, a suas viagens em trens entupidos, enquanto que a classe média seria a detentora da interpretação “correta” da realidade.
A indignação para os populares é transformada em entretenimento ou dramatização, já para a classe média deve ser fundamentada no princípio do liberalismo econômico, uma indignação que está associada ao mercado como solução. Daí, a indignação se volta para o preço da gasolina, ou para o preço da conta de luz.
Na TV aberta, os programas que tratam de cidadania têm a vocação de “fazer pelo povo”, de entrar em contato direto com ele (aciona as autoridades para providenciar, pontes e asfaltar ruas). Já o mesmo tipo de programa, quando direcionado para a classe média, assume a missão de formador de opinião, ideológico, com o propósito de fazer com que essa classe se mova em prol do projeto de Estado defendido pelas grandes corporações, onde a política é demonizada e o mercado endeusado.
A esta última forma de indignação, que levou milhares de brasileiros às ruas para tirar Dilma do poder, está atrelada às maneiras pelas quais Aristóteles classifica tal sentimento. “Indignamo-nos, vendo os maus beneficiarem da riqueza, do poder e de vantagens análogas”, diz o filósofo grego. Já a indignação dos populares seria, de acordo com Aristóteles, contida porque não se tem o objetivo de despertar nessas pessoas a ambição, apenas a subserviência: “as pessoas de caráter servil e desprovidas de ambição não são suscetíveis de se indignarem”.
O que estamos tentando dizer (se ainda não ficou claro) é que a instância midiática tem um discurso sobre cidadania para cada classe. Às camadas populares apresenta-se como intermediária entre a indignação (que é anulada) e a realização; às camadas médias coloca-se como a condutora, esclarecedora, produtora de ferramentas ideológicas para solucionar a sua indignação (que é alimentada).
Podemos até acreditar que a mídia se comporta desta maneira porque os pobres têm mais urgência, e o anseio daquele que passa por dificuldades o obriga a aceitar a primeira solução que o propõe. Para o filósofo Ernst Bloch, a urgência torna a ação vaga e indefinida. Não há reflexões.
Já a classe média, com menos urgência, passa por um trabalho mais pormenorizado. É nela que a má consciência que serve como névoa que esconde a infraestrutura econômica deve ser implantada. Ela é também explorada, mas “como nenhuma exploração deve se deixar surpreender nua, ideologia é, por esse lado, a soma das representações em que cada sociedade se justificou e se transfigurou com o auxílio da má consciência”, nos explica Bloch. E dessa maneira, a sociedade continua se reproduzindo.
Sendo sua indignação manipulada pelos que controlam os canais de difusão da informação, do entretenimento e do drama, a esquerda precisa criar o discurso autônomo, libertar-se da fala escravizada que os veículos burgueses de comunicação dão a ela o direito de falar.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.