João Fernando Finazzi *
No agravamento da longa crise política haitiana, o último dia 7 de fevereiro foi fundamental. Para boa parte da oposição ao atual presidente Jovenel Moïse, trata-se da data que encerra seu mandato. Naquele dia, aos já expressivos e crescentes protestos em massa no país, registraram-se também, segundo o governo, uma tentativa de golpe de Estado - levando à breve prisão do juiz da Suprema Corte, Yvickel Dabresil, tido como um dos conspiradores.
Moïse foi eleito em 2016, ainda no contexto da Minustah, com apenas 9,5% de votos de todo o eleitorado, devido à alta abstenção. Naquele momento, o pleito foi reconhecido como um sucesso pela OEA, que parabenizou os haitianos pelo resultado – não aceito por frações da oposição.
Além do presidente, ONU e OEA também têm se tornado alvos crescente dos protestos populares que ocorreram no país, tidas como uns dos últimos bastiões de sustentação de Moïse. As críticas às organizações, que datam desde ao menos a intervenção de 2004, cresceram após a atual representante da ONU no país minimizar o tamanho das manifestações.
Algumas discussões e posicionamentos sobre este momento da crise haitiana têm adquirido contornos muito parecidos com aquelas realizadas em momentos anteriores. Notadamente quando se reflete sobre o papel que, no Haiti, deve ter a chamada “comunidade internacional”.
Na virada dos anos 1990 para 2000, o contínuo aprofundamento da crise do Haiti suscitou nos entusiastas do projeto internacionalista liberal a reflexão sobre o que poderia ser um importante dilema: como a chamada “comunidade internacional” deveria se posicionar frente àqueles acontecimentos? Afinal, a crise indicava as limitações dos amplos esforços de promoção da democracia realizados no país de 1994 a 2001 pelas várias missões multilaterais sob a égide da ONU - notadamente de reforma do setor de segurança e criação de uma nova força policial.
Por um lado, enviar novamente tropas ao Haiti, assim como em 1994, poderia municiar as acusações de imperialismo e ingerência externa e aumentar a responsabilização dos interventores sobre os desdobramentos subsequentes - como de fato ocorreu. Por outro lado, deixar de agir significaria permitir, após consecutivas missões, a possibilidade do agravamento das incertezas e do quadro de violência, instabilidade e crise humanitária - num local que está a 2 horas de voo de Miami!
Entendemos que, na verdade, trata-se de um falso dilema, fundamentado na falsa concepção de Estados Falidos e no mito da intervenção humanitária. Ou seja, na assunção de que as causas da falência estatal são exclusivamente endêmicas ao Haiti, enquanto suas consequências são internacionais e, portanto, é responsabilidade da comunidade internacional “cuidar” do Haiti.
Para a ONU, o Haiti do início dos anos 2000 provavelmente foi mais um elemento a ser considerado na reavaliação, já em curso, das operações de paz (Relatório Brahimi, 2000), somando-se, principalmente, aos desastres humanitários de Ruanda e Bósnia. Ainda no final de 2000, o então secretário-geral, Kofi Annan, reconheceu o fracasso das operações no país, ao instar a Assembleia Geral da ONU a encerrar a Missão Civil Internacional de Apoio ao Haiti, tendo como justificativa o próprio agravamento da instabilidade política.
Ao longo do início dos anos 2000, a crise haitiana se intensificou, com recrudescimento da repressão por parte do governo e de violências praticadas por diferentes grupos armados partidários ou opositores do então presidente Jean-Bertrand Aristide. A oposição armada passou a adquirir cada vez mais força a partir de 2002, notadamente no interior do país, culminando com a saída de Aristide em 29 de fevereiro de 2004. Poucos dias antes, Aristide tinha solicitado ajuda da “comunidade internacional” para conter a insurgência.
Estes acontecimentos poderiam ter significado mais um indício da falência do modelo do internacionalismo liberal baseado em intervenções internacionais multilaterais, promoção da democracia liberal e da economia de mercado. Contudo, a resposta da “comunidade internacional” foi de renovada fé no intervencionismo, ungida na certeza das “lições aprendidas”. Em março de 2004, após a intervenção da coalizão militar liderada pelos EUA (e antes da criação da Minustah), o posicionamento de Annan com relação ao Haiti era diametralmente oposto daquele de novembro de 2000. Em artigo publicado no Wall Street Journal, o secretário-geral escreveu que somente uma intervenção ainda mais profunda e duradoura poderia salvar o Haiti, “claramente incapaz de se resolver por si mesmo”.
Hoje, passados cerca de 20 anos, o mesmo falso dilema volta a se desenhar no horizonte, de modo difuso ou evidente. Por mais que a Minustah tenha se encerrado em 2017, diversos aspectos estruturais e internacionais do atual capítulo da crise haitiana são observáveis, ao menos no que tange às questões energética e alimentar, dentre outras.
Por outro lado, atualmente, as grandes potências têm se distanciado do governo haitiano, mantendo um pequeno - e decrescente - apoio a Moïse, com o intuito da realização de eleições até o final de 2021. No entanto, durante a mais recente reunião do Conselho de Segurança, o embaixador da China foi contundente, sugerindo que a organização deve repensar seu futuro no país e evitar “investimentos infrutíferos”.
Nos EUA, para além da atual crise de saúde decorrente da Covid-19, o governo Biden também aparenta estar primariamente ocupado com certa “reconstrução interna”, considerando a ascensão da extrema-direita e a crise política inaugurada nos últimos momentos do governo Trump. Contudo, se constata crescente mobilização de setores da diáspora haitiana e de outros atores interessados na queda de Moïse, posição já manifestada pela Câmara de Comércio Americana no Haiti, e em editoriais do New York Times (novembro 2019 e fevereiro 2021) e do Washington Post.
Portanto, é preciso não esquecer que, mesmo no auge do envolvimento no Afeganistão e no Iraque, os EUA não se furtaram a enviar tropas militares para conter o aprofundamento da crise haitiana e consolidar o golpe contra Aristide em 2004.
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*João Fernando Finazzi é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-sp) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos e do GECI.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.