Gosto de começar mandando a real. O documentário é esteticamente conservador. E politicamente moderado, com tons de sensacionalismo.
Mas pode ser encarado também como importante complemento do documentário, esse sim, fantástico: “A 13ª emenda” – uma aula/denúncia, que explica toda história dos EUA.
Premiadíssimo, o filme dirigido por Ava DuVernay expõe e detalha o tamanho do problema que é a violência da polícia, as iniquidades do sistema de Justiça, os interesses de empresas - que privatizam as prisões.
Tudo isso é abordado. Sobretudo se evidencia como a perseguição à população negra é histórica, uma ação de Estado, levada ao cabo por presidentes republicanos e democratas, indistintamente.
Os EUA têm atualmente mais de dois milhões de pessoas presas, lidera o ranking mundial: 25% dos encarcerados do mundo, tendo apenas 5% da população do planeta (o Brasil tem mais de 700 mil e é o terceiro país desta lista sinistra).
Voltando… Relevando suas limitações e algumas tentações ao alarmismo, o filme que acaba de estrear na Netflix ajuda a entender como se construiu nos EUA (e em todo mundo) uma narrativa falsa, moralista e hipócrita, que, no limite, serve apenas para oprimir pretos e pobres. Ah, claro, e combater “comunistas”.
Calma, calma. A confusão toda tem a ver com a explosão da entrada de cocaína nos EUA, enquanto Nancy fazia campanhas hipócritas e inócuas e Reagan operava de todo e qualquer jeito para derrotar os sandinistas em Nicarágua. Lembram do caso “Irã-Contras”?
Aliás, tem um baita filme que conta essa história: “American Made” (Feito na América), de 2017, com Tom Cruise no papel principal (de um piloto estadunidense, cooptado pela CIA, que se torna um dos eixos do transporte de armas ilegais para os “contras” e, em contrapartida, podia trazer muito pó para os EUA, na volta).
Linha do tempo - É bem instrutiva a rememoração dos acontecimentos que o novo documentário faz. Em linha reta, nos é desenhada a conjuntura. A vitória de Reagan nas eleições de 1980 inaugura uma era de desconstituição das políticas sociais e favorecimento dos negócios – os ricos ficam mais ricos. Aumenta a desigualdade.
Enquanto nos loucos anos 80, a classe média e os ricos se divertiam com pó (imagino como era essa cocaína da boa!), pretos e pobres se afundavam no crack, que surge com força na primeira metade da década, alternativa barata para a colocação.
Apesar do tom meio exagerado/piegas para fisgar audiência, o documentário resgata a hipocrisia da campanha “just say no”, liderada pela senhora Nancy Reagan, first lady. O mais importante é a cronologia: em 1986 - fim governo de Ronald Reagan, foi instituída uma lei hiperpunitiva contra “traficantes” de crack, agravada em 1988 (já sob a então presidência de Bush pai).
O pânico moral se instala. Repressão brutal contra pretos-pobres – embora a maioria que fuma é gente branca. Estigmatização das mulheres-mães pretas (como se fossem quase assassinas dos filhos por conta da dependência).
Entra Clinton e tudo piora mais. O cara boa pinta, do Partido Democrata, em 1994, endureceu enormemente a legislação penal, encheu as polícias de dinheiro, contratou milhares de policiais, construiu novas unidades prisionais, autorizou encarcerar menores de idade.
O negócio é tão pesado que em 2015, Hillary Clinton, candidata à Presidência, fez mea culpa - mezzo envergonhada - das políticas do maridão - e defende o fim do encarceramento em massa.
Um outro fio desfiado discretamente no documentário é o papel do governo norte-americano em geral e da ci ai ei (CIA) em particular, na introdução e disseminação do crack nos bairros negros do país.
E nós com isso?
Ponto alto do documentário: desconstrução do pânico moral e das fake news sobre o crack (que eram veiculadas pela mídia tradicional).
Aliás, a ideia de “epidemia” de crack circulou também fortemente no Brasil. Discurso aterrorizante sobre o poder da droga de “viciar” e matar, escândalo e sensacionalismo. Superestimação do número de usuários.
Mais grave: moralismo repressor, anticientífico, que desconsidera o contexto de uso, a trajetória de vida de cada pessoa. Não há, e nunca houve, epidemia de crack no Brasil.
Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz, de 2019, aponta apenas 3,5 milhões de usuários de drogas ilícitas no Brasil. E de crack? Só 208 mil.
Sim, gente. É isso mesmo! O Brasil tem 211 milhões de habitantes e menos de 1% já usaram o temido crack.
A droga que nos causa o maior problema de saúde é o álcool. Liberado e incentivado socialmente.
Nem vou entrar aqui no debate sobre a necessidade urgente de um novo marco legal – que abrangesse todas as drogas, regulando-as de conjunto (do cigarro aos antidepressivos).
Ou seja, é preciso urgentemente tirar o controle do crime organizado sobre a produção e distribuição da maconha, cocaína, ecstasy, ácido, etc e tal.
Fico só na constatação óbvia. Os governos Lula-Dilma foram extremamente conservadores nos temas da segurança pública, organização das polícias e regulação das drogas.
Pior: caíram no senso comum reacionário. Dilma ainda muito mais que Lula. O governo Dilma abriu o coração para as “comunidades terapêuticas” – financiando evangélicos fundamentalistas picaretas que prometiam curar “viciados” – a turma da saúde mental, nossos aliados de esquerda, cientistas, ficaram desnorteados.
Raiva mesmo é quando eu vejo, aqui, no centro de São Paulo, ou na chamada “cracolândia”, um busu - dos grandões, da Guarda Municipal, com uma faixa: “crack: é possível vencer”. O programa do governo petista.
Dilma e Zé Eduardo (ministro da Justiça, que achava a Lava Jato um avanço no combate à corrupção) financiaram armamento e estrutura para agentes repressores das prefeituras. Isso tudo para “vencer” o crack.
Como se guerrear contra uma substância química, na verdade, não fosse combater pessoas de carne e osso. Uma política errada de zero a cem. Senso comum e, claro, totalmente de direita.
Mas, nem tudo são trevas.
O governo Haddad fez o “De braços abertos”.
O melhor e mais avançado programa de promoção da cidadania de pessoas que sofrem com dependência química e abuso de drogas que o Brasil já viu.
Geração de renda, garantia de moradia, respeito à autonomia de cada indivíduo, emprego, perspectiva de futuro, assistência integral.
O PSDB acabou com o programa em uma canetada, assim que chegou ao governo paulistano. Uma pena.
Que o PT e a esquerda aprendam com o que fez Haddad em Sampa e que nunca mais façam essa tosquice dos governos Lula-Dilma (exceção Pronasci!).
E que a esquerda discuta, de fato, segurança pública, genocídio da juventude preta, encarceramento em massa, reorganização das polícias e nova política de drogas.
Bora parar de mimetizar o Datena! E enfrentar ideológica e politicamente o bolsonarismo.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.