Em um futuro distante, quando a raça humana superou os preconceitos de gêneros e raciais, um conflito central que assola a humanidade por séculos permanece vivo: a luta de classes.
Tendo habitado diversos planetas e satélites naturais do sistema solar, na série The Expanse, os terrestres vivem da exploração do trabalho dos “belters”, seres humanos que sofreram um decréscimo na tolerância ortostática por decorrência de uma longa estadia no espaço. Eles habitam o Cinturão de asteroides onde trabalham, principalmente, na extração mineral. Estes desgraçados são condenados a trabalhar e produzir toda a riqueza que alimenta os terrestres que controlam todo o sistema solar, tendo como liderança a Organização das Nações Unidas (ONU), sob o comando de uma mulher indiana chamada Crisjen Avassalara.
Ao longo de quatro temporadas, os belters se organizam por meio da APE (Aliança dos Planetas Externos), liderada por um homem negro, Fred Johnson. Este, por não ser um belter, causava muitos conflitos, principalmente entre os que almejavam uma postura mais radical por parte do movimento.
E, de fato, Johnson acabou promovendo uma trégua com a Terra e Marte, outro planeta que menosprezava os habitantes do Cinturão.
É somente no final da quarta temporada que o revolucionário Marco Inaros dá as caras. Depois de um julgamento do qual consegue se safar, promove a união das diversas facções belters liderando uma revolução.
Diferente de Fred Johnson, Inaros não quer acordo com os terrestres, mas destruí-los. Consegue manipular asteroides e lançá-los contra a Terra provocando uma catástrofe na qual milhões de pessoas são mortas. A Terra é inundada.
É lógico que na quinta temporada, Inarosse tornaria o grande vilão da história. Johnson é assassinado por uma das agentes do revolucionário belter e os protagonistas (Naomi Nagata e companhia) embarcam em uma empreitada em conluio com a Terra para impedir a revolução belter, a revolução da classe trabalhadora.
Esse mundo completamente modificado ainda precisa de uma revolução porque como demonstra Reymond Williams sobre a obra de Wells, o que criou este futuro não foi a revolução, mas a modernização técnica.[1]
A primeira relação do ser humano com o cosmo foi através do mito e a ficção científica é apenas a face moderna das antigas mitologias. A utopia imposta sobre um futuro tecnológico estipulado pela grande indústria cultural, um futuro que alimenta e justifica a produção e o consumo de tecnologias (muitas vezes inúteis), enfraqueceu a utopia humanitária, o sonho de uma sociedade mais justa.
Como explica o historiador Georges Minois, a ficção científica “imagina mundos inquietantes, que são o prolongamento direto das tendências técnicas e sociológicas do mundo contemporâneo. E, o que é muito revelador, toma o lugar da utopia".[2]
Deste modo, se, como acredita o filósofo Ernst Bloch, “ser homem significa ter uma utopia", é de extrema importância compreendermos o discurso dos filmes e séries de ficção científica.
Mas por que representar a revolução da classe trabalhadora em um futuro tão distante? Justamente para manipular a mobilização dos trabalhadores de nosso tempo, que vêm sofrendo bombardeios e perdas de direitos no processo de uberização do trabalho.
A indústria 4.0, que também financia este tipo de produção artística, está promovendo um projeto de precarização do trabalho e, por conta disto, vem sofrendo represálias por parte dos trabalhadores.[3] Deste modo, a radicalização do movimento revolucionário dos trabalhadores deve ser descrita como terrorismo, assassinos que matam inocentes, lunáticos que destroem o planeta. Inclusive até na questão íntima esse revolucionário deve ser sujo, já que Inaros escondeu seu filho proibindo-o de ver a própria mãe.
A série manipula o tipo de “subversivo" tolerável na figura de Fred Johnson que, de fato, não passa de um reacionário, já que nada fez para melhorar as condições dos trabalhadores belters.
Enquanto isso, os trabalhadores independentes, como os tripulantes da nave Rocinante, que vivem fazendo bicos, sem vínculos empregatício, bancando seus próprios instrumentos de trabalho, etc., são vistos como heróis.
Este fenômeno também pode ser observado na série da Disney+, The Mandalorian, onde um guerreiro da periferia do universo de Star wars não passa de um proletariado de serviços, uberizado, que tem que pagar por sua nave, sua armadura e os demais instrumentos de trabalho, como os membros da Rocinante em The Expanse e, igualmente, como os motoboys dos aplicativos de entrega do mundo contemporâneo.
Certamente veremos um complexo de Édipo na próxima temporada no qual Philip, filho de Nagata com Inaros, trairá o próprio pai para ficar com a mãe. Um clichê hollywoodiano no qual resgata nossas emoções mais profundas para desviar nossa atenção de causas sociais como, no caso de The Expanse, a revolução belter (proletária).
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
[1] WILLIAMS, R. Cultura e materialismo. São Paulo: Edunesp, 2011, p. 281.
[2] MINOIS, G. História do Futuro. São Paulo: EdUnesp, 2016, p. 612.
[3] ANTUNES, R. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da Indústria 4.0. In: ______. (Org.). Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.