Não vou entrar na celeuma sobre o Big Brother Brasil, do quanto ele é deletério à sociedade e em que medida o programa é utilizado pela Rede Globo para alimentar um processo de alienação coletiva e para introjetar padrões de comportamento.
A saída do garoto Lucas Penteado da edição 21 do BBB, por "vontade própria", que renunciou à sua participação depois de alguns dias de intensa violência verbal e psíquica contra ele, provocou uma onda colossal de repúdio nas redes.
Lucas é um jovem negro. Um garotão ator que participou do folhetim adolescente Malhação e que curte rap e fazer rimas. É um pentelho também. Falastrão, quando bebe fica chato e repetitivo, mas nada diferente de tantas outras pessoas que nós conhecemos pessoalmente.
O problema mais sério teve início quando um grupo de participantes, liderados pela cantora Karol Conká, começou a tratá-lo de maneira cruel e intensamente humilhante, lançando contra o rapaz toda forma de ofensa, xingamentos e ameaças, além de um farto repertório de torturas psicológicas.
Lucas pirou, começou a apresentar nítidos sintomas de desordem psíquica e a certa altura passou a se autoflagelar verbalmente, concordando com os insultos dirigidos a ele e afirmando que os companheiros de confinamento estavam certos sobre o que diziam e com relação à forma desumana como era tratado.
Depois de uma desgastante quinzena sendo trucidado pela patota tóxica, na festa de ontem, Lucas beijou um outro participante, assumiu-se bissexual e outra vez foi achincalhado e hostilizado por seus carrascos. Não resistiu, pegou seus panos de bunda e saiu da atração, claramente perturbado.
Há componentes de ordem racial e de gênero nessa história, não os descarto, mas não vou me ater a esses aspectos por ser um homem branco e heterossexual, o que pode não resultar numa percepção fiel da realidade dos fatos atrelados a pessoas negras, bissexuais ou gays.
O fato é que, enquanto toneladas e toneladas de críticas e protestos entopem o ciberespaço, a pergunta que faço ao leitor é: quantas vezes não vimos um Lucas nessa vida e quantas vezes já não fomos o próprio Lucas?
Meu primeiro emprego formal, registrado, foi aos 18 anos, numa das maiores redes de supermercados da América Latina. Trampo de peão mesmo, descarregar caminhão de mercadorias na plataforma. Filho de um operário portuário e de uma dona de casa, só pude estudar alguns anos depois, com o surgimento de políticas de crédito e acesso estudantil para camadas sociais mais pobres.
O sujeito que era meu encarregado foi um dos seres mais repugnantes que já conheci.
Devo fazer justiça e admitir que eu não era o mais maltratado dos funcionários, mas o cara me chamava de imbecil e imprestável sem a menor cerimônia. Cheguei a vê-lo se dirigir a uma colega como "vadia".
Um rapaz que tinha problemas de sudorese, que era meu parceiro de turno, e que por vezes não ficava com um odor muito agradável, era humilhado diariamente na frente de todos por esse encarregado.
Depois de meses nesse regime e precisando do emprego, não consegui me conter e após um insulto, nos corredores subterrâneos da loja, reagi com muita energia.
Eu sempre fui grandalhão, de voz alta e grave, mas um cara pacífico e sossegado, embora sem paciência. Fechei a cara, mandei o bonitão se foder e comecei a andar na sua direção, como se fosse encostar minha cara na dele.
Duas semanas depois fui demitido. Ele nem veio me comunicar o desligamento, mandou um puxa-saco avisar.
Claro que ao longo da vida vi várias outras coisas parecidas, talvez piores, assim como todos vocês, e é por isso que o caso de Lucas tocou tão profundamente a quase todo mundo.
A covardia dos canalhas provoca um nó na garganta e inevitavelmente pinça nossas piores experiências na vida, como vítimas ou como testemunhas.
A humilhação sistemática destrói a mente do humilhado. Ao ver as cenas do BBB das últimas semanas, milhões de pessoas sentiram uma angústia, algo remoendo na memória.
Afinal, já vimos tantos Lucas e já o fomos tantas vezes... Isso acende o sinal de alerta de humanidade que carregamos aqui dentro.