Quem a si próprio elogia, não merece crédito.
Sabedoria popular chinesa
O aniversário de 41 anos do PT é um momento para voltar a pensar o lugar e a dinâmica do partido no contexto da oposição ao governo Bolsonaro. Em resposta a um artigo sobre a história do PT que o portal Opera Mundi atreveu a publicação[1], Valter Pomar escreveu um texto crítico e instigante que me fez refletir sobre o passado, e as posições que defendi ao longo dos últimos quarenta anos[2].
Os dois textos saíram entre o Natal e o fim do ano. Mesmo considerando que estávamos em ano de pandemia foi um pouco extravagante, e provocou um amigo sarcástico a me escrever uma mensagem lembrando que “Deus castiga”. Então a tréplica sai agora durante o Carnaval, para manter o estilo.
Mas a verdade é que os textos de polêmica de Valter Pomar são sempre minuciosos, inteligentes e, ironicamente, divertidos. Deixando de lado o que me pareceram filigranas ou nuances, são apresentados, essencialmente, dois argumentos principais. Tenho acordo com o primeiro e discordo do segundo.
O primeiro é a avaliação de que a história do PT é incompreensível sem destacar o papel que a esquerda do PT, em suas diferentes componentes, cumpriu, mesmo quando foi derrotada, porque contribuiu para evitar uma desfiguração do caráter de classe do partido. Um argumento, historicamente, justo.
O segundo é que, apesar de tudo, o PT continua sendo um partido em disputa. Essa linha é menos convincente. Pode ser argumentado que uma luta só termina quando acaba, mas parece difícil de acreditar, quando a aposta repousa em uma expectativa, essencialmente, voluntarista, mas de inspiração dialética hegeliana (tese, antítese, síntese) de que a luta pela regeneração do PT é a melhor hipótese para pensarmos a reorganização da esquerda brasileira.
Mas além destes tópicos, Valter não deixou escapar uma crítica à minha trajetória centrada em duas avaliações históricas, o que me oferece a oportunidade de uma saudável autocrítica e um esclarecimento.
Escrevo estas linhas por duas razões. Primeiro, porque valorizo muito debates honestos que são aqueles em que respeitamos o que os outros escrevem, e descartamos o recurso fácil de exagerar, caricaturizar, ou falsear o que os outros pensam. Aprecio a diplomacia em discussões porque não vejo razão alguma para a aspereza pessoal, ou os argumentos ad hominem: a desqualificação pessoal do outro, quando estamos engajados em uma polêmica de ideias. Justiça se faça, as linhas de Valter Pomar foram duras, mas honestas. Um debate não é mais honesto, somente, porque é mais diplomático.
Segundo, porque venho refletindo sobre os meus erros, e acredito que as duas críticas que Valter sublinhou são, em grande medida, corretas. Nunca tive simpatia por aqueles que insistem em uma teimosia obtusa. A romantização de nossas trajetórias é uma idealização infantil. Ninguém é infalível. Admitir os erros não diminui a nossa militância, ao contrário, estimula a confiança. O esforço de ter uma atitude autocrítica é educativa.
Indo ao ponto deste texto. Valter me recorda que a Convergência Socialista errou ao considerar que a crise aberta em 1992, com a explosão do movimento estudantil na campanha pelo Fora Collor, seria uma onda revolucionária forte o bastante para abrir condições para a afirmação de uma organização revolucionária com influência de massas, ainda que minoritária. Existiram variadas posições, com distintas mediações na CS sobre o tema, mas não importa. Estávamos errados, por duas razões.
A primeira era a expectativa de que a luta pela derrubada do governo Collor era a antessala de uma crise de regime com a precipitação de uma situação pré-revolucionária, muito inspirada na crise do final do governo Alfonsín que, evidentemente, não se confirmou. A segunda era a aposta de que existiria um espaço político para uma construção independente exterior ao PT, prevendo que a direção lulista poderia vencer as eleições de 1994 que, tampouco, se confirmou.
A perspectiva se inspirava em uma elaboração de Leon Trotsky dos anos trinta, apoiado na tradição da III Internacional, que, resumida “brutalmente”, considerava insustentável regimes de democracia liberal duradouros, com alternância de poder, em países da periferia do capitalismo. Mesmo em um país como o Brasil que tem uma localização semiperiférica peculiar no mercado mundial e no sistema de Estados, um híbrido. Esse prognóstico foi confirmado, para o essencial, até o final dos anos oitenta, mas demonstrou-se equivocado após 1989/91 com a restauração capitalista e o fim da URSS. A subestimação do significado desta derrota histórica, em escala internacional, foi fatal.
Com a perspectiva de hoje, mais de trinta e cinco anos depois, depois de oito eleições presidenciais, é incontroverso que a classe dominante brasileira conseguiu uma relativa estabilização do regime democrático-liberal. O que permanece perturbador e até intrigante é que, depois do golpe institucional de 2016 e da eleição de um neofascista, no contexto de uma dinâmica de recolonização primário-exportadora, após a depressão mundial pós crise de 2008, o regime permanece, em algum grau, ameaçado por uma chantagem bonapartista.
A segunda é uma crítica à evolução política do PSTU na crise aberta após as jornadas de Junho de 2013 que culminou com a campanha pelo Fora Todos. Ela se inspirava na ideia que uma situação pré-revolucionária tinha se aberto, e que a experiência de massas dos grandes batalhões da classe trabalhadora com a liderança lulista, depois de treze anos no governo, seria irreversível. Estávamos errados.
A situação aberta pelo que existia de impulso progressivo nas Jornadas de Junho se fechou em fevereiro de 2014. A potência das jornadas de junho tinha sido exagerada. Tão ou mais grave, as eleições de 2014 e a inversão geral desfavorável das relações sociais e políticas de força, após a derrota diante da ofensiva do impeachment em 2016, confirmaram que a experiência com a liderança do PT era incompleta, embora mais acentuada na juventude. Mas, desta vez, a luta política teve outro desenlace, e a ruptura com o PSTU foi uma autocrítica.
Os dois grandes erros têm uma explicação comum. Ela remete a uma educação marxista de recorte, perigosamente, determinista ou objetivista. Os trotskistas têm três paixões em um coração revolucionário. Consideram a luta pela igualdade indivisível da luta pela liberdade. Seu programa é a revolução mundial. São igualitários, libertários e internacionalistas.
O compromisso com o igualitarismo explica a confiança na luta da classe operária, trabalhadores, juventude, mulheres, negros, LGBT’s e todos os povos oprimidos.
O engajamento libertário explica o entusiasmo com as formas mais avançadas de auto-organização popular, o impulso de experiências de democracia direta participativa e plural, os reflexos antiburocráticos, a defesa das liberdades democráticas.
O internacionalismo explica a solidariedade com as lutas em escala mundial, as campanhas contra o imperialismo e as guerras, o combate ecossocialista contra o aquecimento global, a necessidade da revolução anticapitalista.
Acontece que alimentar três paixões no mesmo coração não é simples. É necessária uma bússola para não se perder nas condições de terrível pressão em que se realizam as lutas políticas. O que é progressivo e o que é regressivo? Essa bússola não pode ser outra, senão uma interpretação marxista da situação concreta. Mas não é simples.
A paixão obreirista pode levar a expectativas infundadas na disposição de luta imediata da classe trabalhadora, ou seja, uma esperança de que a relação social de forças evolua, rapidamente, para melhor. A paixão libertária pode ser contaminada por idealizações democráticas. Direitos nunca são absolutos, porque estão sempre limitados por outros direitos. São sempre relativos. A experiência do processo venezuelano é plena de lições. A paixão internacionalista pode ser corrompida pelas pressões geopolíticas do campismo.
Os princípios são indispensáveis. Mas o mundo é complicado, e a vida é dura. Os princípios não são o bastante. E estamos tão divididos, e ainda é tão grande a nossa solidão política que é muito fácil ceder às pressões poderosas que nos cercam.
Não há gênios entre nós. Sejamos pacientes uns com os outros.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.