Adriana Calcanhoto e o seu olhar nem um pouco indulgente sobre a tragédia do menino Miguel

A canção “2 de junho”, que será lançada por Maria Bethânia em seu próximo álbum, nos coloca cara a cara com o que há de mais profundo e terrível da nossa formação enquanto nação

Foto: Reprodução
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No final de 2020, a cantora e compositora Adriana Calcanhoto lançou a incomum e contundente canção “2 de junho”, onde descreve sem rimas nem métricas a tragédia do menino Miguel Otávio Santana da Silva, morto na cidade de Recife, na data indicada pelo nome da canção.

A primeira-dama do município de Tamandaré, vizinho a Recife, responde pela morte do menino, que estava sob sua proteção enquanto a mãe de Miguel passeava com seu cachorro. Miguel, de cinco anos, despencou do nono andar do edifício de luxo.

A canção, que é uma porrada, pra dizer o mínimo, será lançada por Maria Bethânia em seu próximo disco, que já está gravado e se chama “Noturno”.

Na gravação da autora, Adriana Calcanhoto é acompanhada apenas por sua guitarra, uma Gibson semiacústica com uma distorção discreta que soa quase como um tambor. Com acordes simples alternados, ela faz a marcação fúnebre da história que descreve de maneira precisa, ponteada por números:

A data; a temperatura; a idade de Miguel o voo: “Trinta e cinco metros de voo” e a tragédia final, que ocorre “59 segundos antes de sua mãe voltar”, o quase minuto que poderia ter salvo a criança da falta dos cuidados da patroa.

O pano de fundo, ou mais exatamente o outro plano para além dos números, é o cenário e contexto que ela monta de maneira também exata: “No país negro e racista/No coração da América Latina/Na cidade do Recife/Sai pra trabalhar a empregada/Mesmo no meio da pandemia”.

A situação irremediável, o ter que ir ao trabalho mesmo na pandemia, encontra a única saída que proporciona a tragédia: “E por isso ela leva pela mão/Miguel, cinco anos/Nome de anjo/Miguel Otávio/Primeiro e único”.

Ao final, o destino da tragédia grega do filho de Dédalo, levado à morte pelo sonho de voar, se mistura ao do negro brasileiro irremediavelmente morto “no país negro e racista”: “O destino de Ícaro/ O sangue de preto/As asas de ar”.

Ao final da canção, terrivelmente incômoda e bela, antes de dar tempo que o ouvinte respire, Adriana Calcanhoto emite o longo grito da queda que se acaba em silêncio. Ao fundo, no clipe da canção, o espectador vê uma bandeira brasileira colocada na vertical, onde o círculo azul estrelado com o dístico positivista está furado e, por ele, vaza uma contraluz que nos atinge direto o olhar.

“2 de junho” não é feita pra tocar em rádios, seu clipe não vai bombar nas redes, sua estética em toda a sua extensão não tem nada de agradável. Mas, a seu modo, feita por uma autora que sempre primou pela coragem artística, é um chamado mais do que necessário destes tempos.

Uma canção que nos coloca cara a cara com o que há de mais profundo e terrível da nossa formação enquanto nação.

https://www.youtube.com/watch?v=Myob26bhNqs&feature=emb_logo&ab_channel=AdrianaCalcanhotto