Por Beatriz Marques *
“Enquanto alguns dão uma volta no planeta de foguete, outros despencam de aviões fugindo de campos de refugiados, é essa distopia que nos prova que a humanidade é desigual” - Ailton Krenak
Caos político, pandemia, colapso econômico - estas são as rédeas usadas para navegar os tempos modernos. O ambientalista, escritor, filósofo e líder indígena Ailton Krenak desmembra o sistema em que vivemos e a maneira que pensamos o mundo em seus livros “Ideias para adiar o fim do mundo” e “A vida não é útil”. Para isso, Krenak busca retratar o embate entre duas visões maniqueístas de viver, pensar e habitar o mundo e nos traz reflexões importantes acerca da pandemia de Covid-19.
A sabedoria ameríndia nos ensina que existem diversas maneiras de pensar o mundo e isso inclui o uso da terra. Os povos originários não se guiam pela crença católica de mérito, onde existem dois extremos, o Céu e o Inferno. De acordo com Krenak, para eles, não há nada sobrenatural, tudo está dado pela natureza. Historicamente, por conta da colonização e dos desdobramentos do avanço capitalista, a lógica ocidental ou eurocêntrica classifica os povos indígenas como povos pobres. Todavia, esses povos foram empobrecidos. Quando os navios portugueses e espanhóis chegaram ao “Novo Mundo” (novo para quem chega, pois esse território já era habitado), os colonizadores não compreendiam como esses povos não conseguiam assimilar a tamanha riqueza que possuíam, como o ouro e especiarias.
Assim, o “Novo Mundo” é criado a partir da perspectiva europeia. Nas cartas de Pero Vaz de Caminha, ele descreve as terras encontradas como um verdadeiro paraíso. Essa noção também explica a noção de trabalho, pois os povos originários acolhem os portugueses e espanhóis que mais tardiamente saquearam o continente em nome do progresso. Os indígenas não trabalham (e por consequência não valorizam o trabalho) e isso espantou os colonizadores. Desta forma, os indígenas foram historicamente taxados de “preguiçosos” e o trabalho passou a ser reforçado pela escravidão, o que se torna vital para o processo capitalista no continente americano. Essa ideia de paraíso também é apropriada pela Igreja Católica, quando esta o coloca como uma construção do cristianismo, e a descrição quase bíblica feita por Cristóvão Colombo reforça essa ideia justificando o potencial de catequização, o famoso El Dorado. Desta maneira, a colonização avança na América Latina e vai criando comunidades políticas à imagem e semelhança daquelas encontradas no continente europeu artificiais, antes mesmo de existir o “povo”, e o índigena não entra nesta categoria. Os estereótipos criados ao longo do caminho aprofundam a marginalização desses povos, tidos como preguiçosos, violentos, ingênuos ou até mesmo mendigos (este último ligado à lógica capitalista de acesso ao patrimônio), e essa é uma das maneiras através das quais podemos observar como estes povos foram empobrecidos. Mas, como caracterizá-los dessa maneira se seus modos de vida não operam segundo as regras do sistema capitalista?
“Os seres humanos não têm certificado, podem dar errado.
Essa noção de que a humanidade é predestinada é bobagem.
Nenhum outro animal pensa isso”
(A vida não é útil - p. 41-42).
A luta transnacional atual travada entre os povos originários e o sistema que os oprime se baseia na demanda pela demarcação dos territórios que esses povos habitam há séculos. Os povos indígenas precisam fazer uso das engrenagens do modelo capitalista, por meio das demandas em ONGs internacionais, organizações internacionais e enfrentamento direto aos governos, para fazer valer não apenas sua existência, mas sua sobrevivência. Mas por que a terra é tão importante para esses povos? Os povos indígenas não são donos de suas terras, eles pertencem a elas, não existe uma distinção clara entre o humano e a natureza, logo, a sua existência depende não só do acesso à terra, mas da permanência no mesmo e esse acesso não se dá pela exploração, porque a terra não é uma “coisa”. No capitalismo, a “coisificação” permite a exploração dos recursos e se desfaz da natureza como algo vivo. Já para Krenak e os demais povos originários, as montanhas e rios fazem parte da ancestralidade de seu povo.
Existem diferentes ritmos de vida, mas as categorias temporais eurocêntricas colocam os indígenas como atrasados ou “contra” o desenvolvimento, na constante ideia de se justificar diante do mundo. A vida, em vez de ser fruição, vira um concurso. Não é à toa que essa sociedade está conhecida como a sociedade da exaustão, na qual aos 25 anos os jovens se encontram com a síndrome de “Burnout”. Essa narrativa já vem ganhando força na indústria cinemática. O recente sucesso da Pixar, “Soul”, filme que retrata a vida de um homem negro estadunidense em busca de seu próposito material de acordo com os moldes do sistema capitalista de produção e consumo na vida (o poder de cooptação do sistema capitalista nos faz ficar viciados em tudo aquilo que é novo), mas tem como a moral da história exatamente esta ideia: não é preciso buscar um próposito para a vida, esta deve apenas ser vivida. Saber quem somos, o que estamos fazendo são perguntas que assombram os homens desde o começo da humanidade. Em tempos de exaustão e incertezas, é comum as pessoas buscarem maneiras de justificar sua existência no mundo.
“Nosso tempo é especialista em criar ausências:
do sentido de viver em sociedade,
do próprio sentido da experiência da vida”
(Ideias para adiar o fim do mundo - p. 26).
A forte presença de líderes indígenas de todos os cantos do globo na COP 26 não é novidade. Por conta da urgência dos temas tratados, a conferência entre as partes realizada em Glasgow em novembro deste ano vem sendo apelidada de “a COP da ação”. O que vivemos hoje é uma crise anunciada há muito tempo pelos povos originários, os mesmos fazem uso incansável de mecanismos internacionais para fazer este alerta. Com a extinção desses povos, o caminho fica livre para os interesses do agronegócio como a criação de gado, garimpo ilegal e extrativismo, tudo em nome do agro; afinal, o “agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo”. Resguardar o direito à terra dos povos indígenas significa combater o colapso ambiental iminente de uma vez por todas, uma vez que tais povos não se intitulam “donos” das terras, pois não existe uma relação de posse e interesse predatório e sim de convívio harmonioso. O entendimento disso por parte das organizações internacionais, dirigentes e seus governos é fundamental para respeitar a demarcação de suas terras.
Krenak resgata a noção de humanidade e a de sub-humanidade, sendo a primeira responsável pela devastação e miséria e a segunda é tudo aquilo que não carrega os mesmos valores pregados pela primeira. A humanidade se guia pela ideia de predestinação, talvez seja por conta de sua herança ocidental e influência da Igreja Católica. Segundo Krenak, o século XX deixou isto muito claro, ao criarmos todos os mecanismos para exterminar a nossa própria existência na Terra. A maneira em que enxergamos esses dois conceitos, tempo e civilização, sempre em avanço, faz referência a uma humanidade que, na realidade, não tem nada de tão extraordinária. Segundo Krenak, devemos abandonar o antropocentrismo, ou seja, o pensamento de que o homem é o elemento central para o entendimento do mundo, pois existe muita vida além da humana. A negação da pluralidade de formas de vida, de existência e de hábitos, está intimamente ligada com o colonialismo - processo marcado pelo encontro entre os civilizadores e os capturados - em que o pensamento do colonizador branco é de dar utilidade à vida e civilizar-se passa a ser um destino.
“(...) A vida não tem utilidade nenhuma. A vida é tão maravilhosa
que a nossa mente tenta dar uma utilidade a ela, mas isso é uma besteira.
A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica,
e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária.”
(A vida não é útil - p. 108)
Em “A vida não é útil”, Krenak traz reflexões acerca do enfrentamento da pandemia e destrincha o sistema capitalista desde o consumo desenfreado ao sistema educacional que nos ensina a como operar no mundo, de maneira que já nos inserimos na sociedade “configurados”: se não estamos programados para consumir, geramos despesas e, logo, somos descartáveis. O líder indígena ainda comenta o modo como o capitalismo adquire novas roupagens, como é o caso da sustentabilidade, isto é, uma eventual decisão individual sobre comer menos carne, não usar automóvel, de tomar todas as medidas necessárias para reverter a mudança climática, entre outras. Entretanto, esse mito da sustentabilidade não impede que o planeta continue derretendo. Ninguém irá se salvar sozinho, todos serão afetados pelos impactos causados pela humanidade e, por isso, torna-se urgente repensar novas maneiras de habitar o mundo.
As obras de Krenak dão um respiro para aqueles que se encontram verdadeiramente perturbados pelos horrores que estamos enfrentando, cometidos em nome do “progresso” da humanidade. De leitura fácil, rápida e entretida, seus livros podem ser lidos até mesmo em uma única tarde. Mas, não se engane: embora as tímidas 126 páginas não deem um tom ameaçador às obras, com relação ao conteúdo, “Ideias para adiar o fim do mundo” e “A vida não é útil” vão te deixar com uma tremenda crise existencial.
“Nós, os povos indígenas, estamos resistindo ao
“humanismo” mortífero do Ocidente há cinco séculos,
estamos preocupados agora é com vocês brancos,
que não sabemos se conseguirão resistir!”
(Ideias para adiar o fim do mundo - p. 81)
Texto revisado por Isabela Agostinelli e Victória Perino Rosa
*Beatriz Marques é graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.