A nossa entrevistada de hoje na série sobre evangélicas/os progressistas é a jovem Priscilla dos Reis Ribeiro, indígena tupinambá em Retomada, licenciada em música pela Unirio, bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Escola de Pastores e pós-graduada em Educação pela Harvard Graduate School of Education. Priscilla também é Mestra em Teologia Histórica pelo Centro Presbiteriano de Pós Graduação Andrew Jumper da Universidade Presbiteriana Mackenzie, leciona disciplinas de História na Escola Teológica Reformada desde 2005. É membro da Igreja da Garagem RJ, atua na coordenação colegiada da "Frente de Evangélicos pelo Estado Democrático de Direito" (núcleo RJ) e na Articulação Indígena do Movimento "Nós na Criação". Participa do "Coletivo Memória e Utopia" e do "Fé e Política: Reflexões" além de ser colaboradora da "Resistência Reformada", do Coletivo de Feministas Cristãs "RUAH - ser mulher e a fé" e do "Projeto Redomas". Atualmente é mestranda em "Epistemologia, lógicas e teorias da mente" na UFRJ e concentra seus estudos em antropologia e indigenismo.
Para a nossa entrevistada, “reconhecer o valor da teologia do Velho Mundo que herdamos no processo da colonização é importante, mas dialogar e aprender com a diversidade na qual estamos imersos é fundamental para construir pontes com nossa cultura e preservar a relevância de um discurso pertinente.” É a partir daí que propõe uma deconialidade da espiritualidade e na teologia quase hegemônica em nosso país.
Priscilla denuncia essa “teologia colonial que se preocupa muito mais em controlar e oprimir corpos e mentes do que libertá-los para uma vida plena de significado e sentido”, propondo, em contraponto ao proselitismo muitas vezes responsável pela aculturação dos povos originários, um diálogo inter-religioso onde “há que se priorizar a paridade entre essas práticas de espiritualidade, bem como dar espaço para que estes povos decidam a rota espiritual que desejam trilhar a partir de sua autodeterminação. As inúmeras violências que já foram impostas pela colonização, os epistemicídios e a desvalorização das subjetividades originárias, não podem se perpetuar mais!”
Incansável em sua luta contra as injustiças, Priscilla atua em várias frentes e coletivos e afirma, ressaltando a multiplicidade evangélica, que “o desejo de ver esse país menos desigual impulsiona muitos evangélicos e é fundamental perceber que uma disputa de narrativa está em andamento. Os evangélicos no Brasil não são um bloco monolítico, pelo contrário: há muitas faces e muitas vozes que não estão ocupando os lugares midiáticos pois preferem pisar no chão da vida e lidar com gente de verdade que está à margem, enfrentando necessidades reais e não viver de pose nas redes sociais, famintos por likes e lacração barata.”
Provocadora e contestadora desse status quo conservador-fundamentalista que tenta parecer unívoco, encarna a liberdade do Evangelho em expressões culturais, como a participação musical em um dos mais conhecidos blocos de carnaval do Rio de Janeiro, confrontando assim os falsos moralistas: “um cristianismo que se satisfaz com o corpo que sofre e não atenta para o fato de que o corpo que goza também é presente de Deus. Minha gente, a divindade também se manifesta num belo prato de comida, num sexo prazeroso, numa roda de samba cadenciado...”, afirma, de forma leve e livre a nossa entrevistada.
Leia a entrevista na íntegra:
Priscilla, você tem falado bastante ultimamente sobre pensamento decolonial, e uma “teologia decolonial”. Explique pra gente o que é essa teologia e a importância dela neste momento do mundo.
A teologia decolonial propõe a aproximação das vivências de espiritualidade dos nossos povos originários, tanto os de Abya Yala quanto os que para cá foram trazidos, sequestrados de África. Reconhecer o valor da teologia do Velho Mundo que herdamos no processo da colonização é importante, mas dialogar e aprender com a diversidade na qual estamos imersos é fundamental para construir pontes com nossa cultura e preservar a relevância de um discurso pertinente. Isto se aplica às construções sobre como fruimos e compreendemos o ser de Deus, as formas de ser comunidade de fé, o lugar das mulheres como construtoras dos saberes e tecelãs dos afetos e não só mão de obra institucional religiosa, as dimensões da espiritualidade conectadas a Casa Comum e principalmente sobre o posicionamento político a favor da justiça e do direito dos que estão em situação de vulnerabilidade social.
Sua luta junto aos povos originários indígenas é bem conhecida. Por outro lado, os evangélicos geralmente são conhecidos por projetos de aculturação de povos indígenas. Como é a sua atuação? Há outra forma de trabalhar Evangelho e cultura indígena?
Penso que a forma mais acertada de atuar junto aos povos indígenas é colaborar no que for necessário para que estes tenham uma vida digna. Na minha prática como voluntária, tenho me suleado (sim, somos do sul global!) por articulações junto ao poder público e a iniciativas particulares na busca por solucionar problemas concretos do dia-a-dia como o acesso à água e a soberania alimentar. Estas são formas excelentes de testemunhar a revolução do Reino de paz, justiça e alegria, muito mais do que forçar pessoas a estarem periodicamente dentro de um prédio, sendo submetidas a práticas e discursos totalmente estranhos ao seu legado ancestral. Avaliando historicamente, a igreja cristã deveria pedir perdão a estas populações e através de ações propositivas com seus recursos, promover uma verdadeira reparação histórica. Um olhar atento logo percebe que muitas são as conexões existentes entre estas matrizes; cito aqui o respeito pela ancestralidade, a valorização da Casa Comum e a lógica da partilha. No entanto, tais fatores foram esquecidos por uma parcela significativa dos cristãos no decorrer dos séculos devido a uma teologia colonial que se preocupa muito mais em controlar e oprimir corpos e mentes do que libertá-los para uma vida plena de significado e sentido. Num diálogo inter-religioso, há que se priorizar a paridade entre essas práticas de espiritualidade, bem como dar espaço para que estes povos decidam a rota espiritual que desejam trilhar a partir de sua autodeterminação. As inúmeras violências que já foram impostas pela colonização, os epistemicídios e a desvalorização das subjetividades originárias, não podem se perpetuar mais! Os evangélicos no Brasil precisam reencontrar suas raízes comunitárias e elas estão nos povos tradicionais.
Essas lutas acabam refletindo em uma atuação política. Muitos evangélicos têm se levantado em movimentos e coletivos de atuação política na luta por justiça social e em defesa de minorias e grupos excluídos. Qual tem sido a sua atuação nesses grupos e qual a importância desses grupos no atual contexto político brasileiro?
Atualmente atuo no coletivo Sementes da Democracia cujo enfoque é possibilitar autonomia nos territórios que estão em situação de vulnerabilidade social através de projetos que envolvem segurança alimentar e formação pedagógica que são, para nós, as formas de fomentar consciência de classe e educação cidadã mais potentes que existem; atuo também no GT Povos Tradicionais do Coletivo Nós na Criação que foca em questões ambientais. Colaboro com o Coletivo Memória e Utopia que mantém acessa a memória dos evangélicos que foram presos, torturados e mortos no período da ditadura civil-militar e com diversos coletivos de feministas cristãs. Componho junto com outros irmãos e irmãs queridos, de fé e de luta, a coordenação da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito núcleo RJ e isso é muito interessante pois as causas acabam se atravessando e as pessoas estão em mais de um coletivo na maioria das vezes. O desejo de ver esse país menos desigual impulsiona muitos evangélicos e é fundamental perceber que uma disputa de narrativa está em andamento. Os evangélicos no Brasil não são um bloco monolítico, pelo contrário: há muitas faces e muitas vozes que não estão ocupando os lugares midiáticos pois preferem pisar no chão da vida e lidar com gente de verdade que está à margem, enfrentando necessidades reais e não viver de pose nas redes sociais, famintos por likes e lacração barata.
Uma de suas múltiplas atuações é também como ritmista no bloco de carnaval Sargento Pimenta, que homenageia os Beatles, ou seja, você consegue juntar duas coisas tradicionalmente demonizadas pela igreja: rock e carnaval. Como você responde aos questionamentos, que creio serem muitos, sobre essa participação?
(Em tempo: este colunista é também apaixonado por samba e desfilou na Acadêmicos do Grande Rio em 2020)
Ah, a música... (suspiros apaixonados). Sou musicista de corpo e alma desde que me entendo por gente e costumo dizer que uma das coisas mais libertadoras na minha caminhada com Jesus Cristo de Nazaré foi compreender que não existem notas ou teclas santas ou profanas, mas que “toda boa dádiva e todo dom perfeito vem de cima, do Pai das luzes”. Honestamente não perco meu tempo dando explicações a quem demoniza a nossa cultura popular e não sabe lidar com o corpo. Essas são as causas principais das críticas dos falsos moralistas: um cristianismo que se satisfaz com o corpo que sofre e não atenta para o fato de que o corpo que goza também é presente de Deus. Minha gente, a divindade também se manifesta num belo prato de comida, num sexo prazeroso, numa roda de samba cadenciado, enfim… estamos cercados de deslumbre e não vivenciar essa boniteza toda é ofender a divina Ruah, além de carregar o fardo de viver miseravelmente.
Bolsonaro foi eleito com muitos votos evangélicos e mantém como núcleo duro de seu governo alguns acordos com igrejas mais tradicionais, como presbiterianos e batistas. Você crê que isso possa se reverter? Há possibilidade de arrependimento por parte dessa gente? E quais caminhos você apontaria para a igreja brasileira hoje?
Este governante é porta-voz de uma mentalidade muito maior do que ele mesmo e essa deve ser nossa maior preocupação. Ele apenas carrega o nefasto dom de traduzir em si um discurso violento, sexista, homofóbico, racista e anticientífico que denota uma mentalidade. Repare: esta gestão irá acabar e a mentalidade não, ela irá declinar com o tempo, mas permanecerá latente, à espreita. Por isso, enquanto a igreja não for lugar de fomento a uma cultura de pensamento crítico, estaremos fragilizados enquanto cidadãos e pondo a democracia em risco. A melhor forma de analisar uma economia é verificando os armários dos empobrecidos - o que as prateleiras dizem? Este fator é significativo pois a igreja evangélica no Brasil, segundo dados do último Censo de 2010 é majoritariamente feminina, negra, sub escolarizada, sub empregada e periférica - essa gente está sentindo na pele as desgraças deste tempo e é por isso que é neste povo que deposito minha esperança de transformação social. Não sei se haverá arrependimento total mas sei de muitos que já estão em outra rota, com olhos abertos acerca do engodo que sofreram e questionando os rumos do nosso país. Me utilizo da sabedoria ancestral fazendo uma coisa que “crente” adora fazer (porque sou “crente” também, ora bolas rsrs) que é citar texto bíblico: “Sinalizem a estrada para marcar o caminho de casa. Encontrem um bom mapa. Estudem as condições da estrada. A saída é o caminho de volta.” (Jeremias 31.21, A Mensagem)
Por fim, qual mensagem você deixa para os leitores da Fórum?
Não caia na esparrela de achar que todos os evangélicos são iguais. Não, não somos e a atual gestão não nos representa em sua necropolítica e demais absurdos. Os verdadeiros seguidores de Jesus são testemunhas da esperança, são profetas e profetizas que não se cansam de dizer que a vida vence no final pois a ressurreição nos ensina isto: sim, ela ensina que a vida não se pode deter, que essa potência arrebenta as estruturas e denuncia na fragilidade de um corpo crucificado, um estado violento e uma religiosidade hipócrita. Como dizem os Tropicalistas: “É preciso estar atento e forte”. Sigamos juntos porque ainda tem muito chão pela frente!
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.