“A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. A frase do poeta irlandês Oscar Wilde deixaria confuso quem assiste o filme Não Olhe para Cima, lançado na última sexta-feira pela plataforma Netflix. Em outros tempos, a comédia cumpria a vocação de arrancar gargalhadas, mas acabou tornando-se um trágico drama que retrata nosso cotidiano.
Dirigida e roteirizada por Adam McKay, é mais uma película que trata do apocalipse, neste caso causado pela colisão de um cometa descoberto pela cientista Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) e comprovado por toda comunidade científica, a começar pelo seu orientador Dr. Randall (Leonardo DiCaprio). Dali para frente a saga sai da ficção científica para comédia quando entra em cena a presidenta dos Estados Unidos Orlean (Meryl Streep). A mandatária despreza a realidade, mais preocupada com a manutenção do estado de imbecilidade que coordena junto com seu eleitorado negacionista, manipulado na sociedade de massa materializada pela imprensa e redes socais.
Desde que entrou em exibição, a internet cuidou de identificar cada personagem do filme na realidade brasileira. O fim dos tempos simbolizado pelo cometa remete à pandemia do coronavírus, desprezado pelo negacionismo do presidente Jair Bolsonaro, que é auxiliado pelo seu filho e orientador Carlos Bolsonaro, no filme interpretado por Jonah Hill, que é Jason Orlean, filho e chefe de gabinete da presidenta americana. Já os cientistas remetem aos nossos infectologistas Natalia Pasternak como Dibiasky e Átila Iamarino como Dr. Randall Mindy.
A conduta do presidente da República durante toda a pandemia foi pautada pelo negacionismo com a doença, e, o que é pior, pelo ataque contra aqueles que dedicam seu trabalho para salvar vidas, numa ação genocida que contribuiu com a trágica soma de mais de 620 mil mortes.
O Brasil vive assim a cruel realidade de durante a maior crise humanitária do século ser governado por um criminoso com potencial de assassinato em série. A última ação de Bolsonaro foi negar o acesso às crianças das vacinas contra o Covid. Só mesmo um genocida é capaz de tamanha perversidade.
Além de atingir milhões de inocentes que deveria proteger, a ação anti-ciência do presidente colocou em risco a vida dos cientistas que trabalham pela saúde pública. No dia 16 de dezembro, ele usou suas redes sociais para incitar militantes a perseguir os servidores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que autorizam a vacinação de menores de 12 anos. As ameaças de violência contra funcionários da Anvisa foram intensificadas de forma crescente, como destacou a própria autarquia federal, obrigada a solicitar proteção policial aos seus funcionários.
A ação criminosa do presidente foi alvo de uma notícia-crime que apresentei no Supremo Tribunal Federal, numa peça assinada pelos advogados Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues e Joelson Dias. Foi mais uma ação judicial das muitas que movi contra Bolsonaro por sua ação criminosa durante a pandemia.
O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), acatou a denúncia e enviou à Procuradoria Geral da República (PGR). Pela Constituição, cabe ao órgão analisar pedidos de apuração de delitos praticados pelo presidente da República. Agora, está nas mãos do procurador-geral a abertura de inquérito. Até aqui, a gestão de Augusto Aras foi marcada pela leniência, que beira a subserviência, com os crimes presidenciais.
Espero que desta vez o procurador atue com o devido rigor que a matéria merece. Que siga a Constituição e pense nos cientistas e profissionais de saúde que estão se dedicando para salvar vidas ameaçadas pela pandemia. Enquanto aquele que deveria ser o primeiro a cumprir esta função, contribui com as mortes de milhares de brasileiros.
O jurista deveria seguir o exemplo do movimento criado pelos cientistas do filme da Netflix para “olhar para cima”, não só como exemplo de altivez que a relação entre os poderes da República exige, mas para ver que não só as vidas dos agentes da Anvisa estão ameaçadas por Bolsonaro, mas a de milhões de crianças inocentes vítimas de um genocida.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.