"Creio que sei olhar, se é que sei alguma coisa, e que todo olhar goteja falsidade, porque é o que nos arremessa mais para fora de nós, sem a menor garantia... De qualquer modo, quando de antemão se prevê a falsidade, olhar se torna possível; basta talvez escolher bem entre o olhar e o olhado, despir as coisas de tanta roupa alheia. E, claro, tudo isso é bem mais difícil." (...)
"Curioso que a cena tivesse uma aura inquietante. Pensei que era eu que colocava isso, e que minha foto, se a fizesse, restituiria as coisas à sua tola verdade. Levantei a câmera, fingi estudar um enquadramento que não os incluía, e fiquei na espreita, certo de que enfim os apanharia no gesto revelador, a expressão que resume tudo, a vida que o movimento mede com um compasso, mas que uma imagem rígida destrói ao seccionar o tempo, se não escolhemos a imperceptível fração essencial."
Incrível catarse sobre a relação entre o olhar e a câmera, como demonstrado nos trechos acima, o conto “Las babas del diabo” (“As babas do diabo”), publicado pela primeira vez na coletânea “Las armas secretas” (“As armas secretas”, 1959), é a primeira narrativa explicitamente metaficcional de Julio Cortázar e inaugura uma tendência da obra do autor que atinge seu ponto máximo com o clássico romance “Rayuela” (“O jogo da amarelinha”, 1963).
"As Barbas do Diabo" foi a base da livre adaptação de Michelangelo Antonioni, um de meus cineastas favoritos de vida, para fazer a obra-prima "Blow-up - Depois daquele beijo" (1966) com Vanessa Redgrave, em estado de graça no início da carreira, e David Hemmings. O italiano Antonioni pega uma obra escrita pelo argentino Cortázar, que estava na época em Paris, e migra a história para Londres bem no meio dos loucos "swinging sixties" e a efervescência cultural e o modernismo de costumes da influência britânica na moda, música e artes em geral pelo resto do mundo!
Como Cortázar já estava sendo bastante abstrato pela ilusão de perspectivas da foto, e metaforizando a própria gênese de se criar uma imagem (criando com as palavras ou com a percepção delas), talvez tenha achado que fantasiar demais viraria excessivo, e ancorar as dúvidas suscitadas pela narrativa já seria o bastante para criar dúvidas sobre a representação da realidade, então nos traz um conto aparentemente menos fantasioso do que de costume em sua carreira. Porém, apenas aparentemente...
Na verdade, tanto o autor, quanto o protagonista, seu alter ego, enxergam o que eles querem. Eis a mágica do conto e do filme: percepções podem ser enganosas, apesar de sentirem como uma verdade para quem as percebe.
A quebra de expectativa a partir do não dito é o grande salto. O não dito e o não mostrado criam um delicioso paradoxo na escrita sobre como descrever o inenarrável: Como representar o imponderável? Um reflexo da angústia do nosso próprio âmago criando sarna pra se coçar.
Já o filme adota desenvolvimentos diferentes e agrega outras camadas interpretativas, como lugar, espaço e épocas diferentes... os swinging sixties são cruciais pra interpretação do filme, a análise do vazio social, do realismo especulativo... Situa o fotógrafo do conto no meio da alta roda da sociedade londrina em meio à moda e a música da época, e faz uma crônica sobre o vazio existencial preenchido pelos excessos de camadas sobrepostas à essência soterrada a partir da investigação de um suposto assassinato capturado de soslaio numa das fotos do protagonista.
Então, Cortázar narra na primeira pessoa como sendo ele mesmo um fotógrafo, mas volta e meia quebra a primeira e se refere a si mesmo na terceira pessoa.
Quando ele diz que "ele está morto" pode se referir tanto a um dos personagens da foto tirada, quanto a ele próprio... Ou seja, se ele próprio está morto, abre a chave totalmente para o fantástico e a toda uma outra gama interpretativa do olhar e da percepção da realidade. Então, ele poderia ser uma assombração no parque querendo lembrar as possibilidades do que era estar vivo?
Eis a metáfora de ser um escritor e matar suas personagens pra recriar a cada final e recomeço, bem como matar a si mesmo pra criar uma nova história.
Nisso, o conto é muito como o filme também, pois Antonioni "amplia" o morto como se fosse um mistério investigativo, mas nos leva a desaparecer com o protagonista no final, ele também uma alma penada na sua própria trama, como se o que importasse fosse muito mais a metalinguagem da metáfora de se criar uma história.
O escritor "desaparece" com o protagonista (alter ego) mudando as pessoas verbais (entre a primeira pessoa do singular e do plural, ou a terceira pessoa) e o cineasta faz desaparecer o “eu lírico” literalmente apagando ele do negativo da película. Olhando tão de perto, mas tão de perto que se torna um borrão até desaparecer em pixels, pois quando você acha que se aproxima tanto a tal ponto de saber de cada molécula de uma pessoa, ela desaparece no ar e você precisa recomeçar de novo.
Bem... o filme tem um jogo de tênis com uma peteca invisível que o protagonista se junta aos jogadores e arremessa à inexistência na imaginação do espectador... o que vai apregoando igualmente ao filme um tom fantástico a seu próprio modo...
Sem falar que há outra metáfora dentro disso também, de que a foto é uma pequena morte. No momento em que ele clica, essas pessoas estão mortas. Assim como o fotógrafo. Porque aquele instante deixou de existir e passou a ser uma mumificação de um símbolo recortado do movimento da vida. Uma representação estática.
Mas aqui o conto é sobre o próprio ato de criar uma história. O próprio conto metaforiza o ato de escrever, até porque o fotógrafo é um tradutor e está traduzindo algo, ou seja, a representação de outra realidade (outra escrita), e, ao se colocar no conto como escritor e fotógrafo, o próprio Cortázar metaforiza sobre o ato de criar imagens com as palavras e vice versa. Acredito que não seriam "acessórios" como você colocou, mas rabiscos, rascunhos sobre o próprio ato de escrever.
Como o cerne é a construção criativa, os "acessórios" se tornam necessários e até essenciais para a estrutura maior, a de que o próprio conto "não sabe" que é um conto, ou prefere ignorar intencionalmente essa motivação. Pegamos a história andando no meio do caminho da vida de alguém cujo mero ato de fotografar no parque é tão insignificante quanto significante e essencial. Ou seja, levanta questões que parecem importantes, como: A história é sobre a foto? É sobre o casal? É sobre o fotógrafo? É sobre impressões e percepções?
Mas ao mesmo tempo não é sobre nada disso. É sobre como simplesmente criar uma história ao se olhar atentamente para algo de forma tão concentrada que você perde de vista até que perceba que está olhando pra si mesmo.
Toda a liberdade da metáfora na escrita de Cortázar sobre o poder relacional em descrever como se pode "olhar a imagem", no filme, vai se tornando simbologia para Antonioni criar uma abstração plástica da palavra no sentir o que se vê a partir do que não se vê. Toda a essência do filme de duas horas de duração num trecho tão curto de um conto de menos de 15 páginas.
Num roteiro literal, o conto não daria nem 15 minutos de filmagem... Aqui, uma eternidade de interpretações, especialmente porque Antonioni compreendeu que a maior força do cinema está em catalisar o que é visto através do que não pode ser visto, apenas imaginado. Imaginado diferentemente por cada pessoa, a cada vez diferente, jamais o mesmo olhar.
Esta é uma das maiores marcas cosmopolitas de uma adaptação autoral, imprimindo a digital de camadas e mais camadas sobre o que já era maravilhoso no original, mas dando novas significações e poder associativo a outras referências em afinidade que não perdem o sentido geral, só o tornam transcendental para além do espaço e tempo.
E vocês, já leram o conto? Quem ainda não assistiu ao clássico filme, então, corre pra conferir os dois!
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.