Uma noite com Nelson Freire

O pianista, um dos maiores artistas de seu tempo, nos deixou nesta segunda-feira

Foto: Agência Brasil
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A sala Villa-Lobos do Teatro Nacional, em Brasília, estava completamente lotada. A tensão e a expectativa na plateia eram claramente perceptíveis. Dali a alguns minutos iria se apresentar um dos maiores pianistas do mundo, o mineiro de Boa Esperança Nelson Freire.
Assim que subiu ao palco, uma comoção seguida por vários minutos de aplausos recebeu o artista que timidamente arqueava a cabeça agradecido. Quando sentou ao piano, o silêncio dominou o ambiente. A partir das primeiras notas até o final, o público alternava reverência com aplausos estrondosos, que terminaram com a sua volta ao palco inúmeras vezes.
A mesma cena se repetia em todas as partes do planeta onde o pianista brasileiro se apresentava. Há alguns pouquíssimos como ele, que conseguem traduzir e transmitir a própria genialidade e a dos compositores que interpreta de maneira tão certeira.
O espectador não precisa ter experiência alguma em música erudita para se encantar com Nelson Freire. Qualquer cidadão com um mínimo de atenção e sensibilidade é capaz de perceber que ali estava (e estará para sempre) um artista fora do comum, um gênio da música.
Feito uma atração de circo, Freire começou a se apresentar como menino prodígio aos 5 anos de idade. A dificuldade começou quando – conforme ele mesmo conta com alguma modéstia no belo documentário “Nelson Freire”, de João Moreira Sales – acabou-se o prodígio e começou a vida real, de adulto.
A partir de então, Nelson Freire partiu para uma carreira gloriosa que durou décadas, com concertos e álbuns antológicos realizados por todas as partes do planeta, como aquele daquela noite inesquecível em Brasília. Tímido, fumando um cigarro atrás do outro, nos recebeu no camarim logo após o espetáculo. Apertou a mão de um por um e perguntou feito um menino iniciante: “vocês gostaram? Mesmo?”
Gostar era coisa de outra dimensão, mais ordinária. Freire havia nos entregado naquela noite, como sempre fazia sem avareza alguma, a quintessência da obra musical mais bem construída da história da humanidade. Tocar a sua mão me remeteu – logo eu, um ateu – à obra “A Criação de Adão”, de Michelangelo. Suas mãos eram o mais próximo que poderia imaginar das do Criador.
Freire foi um dos maiores intérpretes de todos os tempos do polonês Frédéric Chopin ao lado de sua amiga inseparável, a argentina Martha Argerich e do também brasileiro Arthur Moreira Lima.
Um fato intrigante e que deve ser relevado é a capacidade de nosso país, onde a imensa maioria dos seus governantes nunca deu incentivo algum à música de concerto, ter tantos pianistas reconhecidos em todo o planeta. Demos ao mundo de maneira inesperada e inusitada grandes pianistas, assim como corredores de Fórmula 1. Neste seleto time entra ainda o maestro João Carlos Martins, que antes de sofrer um acidente que lhe tirou o movimento da mão esquerda, deixou para a posteridade gravações antológicas das obras de John Sebastian Bach.
Entre tantos, Freire foi único, um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos e um dos grandes do mundo. O pianista nos deixou na última segunda-feira (1º), aos 77 anos de idade. Até o encerramento deste texto, o secretário de Cultura do Brasil, cargo equivalente a ministro, na contramão de todos os grandes jornais e grupos de comunicação do planeta, não havia dito uma palavra sobre sua morte.
Nelson Freire e sua vida gloriosa foram a prova viva de que o Brasil que vale à pena sobrevive e resiste e resistirá. Para muito além da morte.