E aí, caro(a) leitor(a), o que você prefere? Ter todo o cardápio de filmes à sua disposição no conforto de seu lar, sob o alcance de um dedo no controle remoto ou no celular, ou ainda valeria o esforço e dispêndio financeiro para se deslocar até o cinema mais próximo e ter uma imersão diferenciada?
Evidente que o cinema como nós o conhecemos já vinha sofrendo crises e se transformando em outros formatos mesmo antes da pandemia... E a experiência coletiva de assistir a filmes com risadas, lágrimas e sustos de desconhecidos ao seu lado, potencializando a sessão, jamais vai se dar por encerrada completamente, mesmo com outros modos de ver que o futuro nos reserve (de salas virtuais a hologramas em praças públicas... será?).
Porém, temos no presente momento a eterna discussão reaquecida sobre quais filmes teriam de fato a obrigação de se ver no cinema, ou se todo filme mereceria o formato que bem desejasse. E, na rebarba de filmes ‘exclusivos’ para o streaming (com raras exibições pro-form nos cinemas), como “Alerta Vermelho” da Netflix, ou obras que quase foram lançadas direto em casa e os estúdios voltaram atrás, como “Shang-Chi e A Lenda dos Dez Anéis” da Marvel, que agora aporta na Disney Plus, o fato é que estamos diante de uma faca de dois gumes.
Para começar, “Alerta Vermelho” de Rawson Marshall Thurber (“Arranha-Céu: Coragem Sem Limite”, 2018) é a típica produção megalomaníaca que já veio até com código de barras de produto mais caro da história da Netflix. O tamanho do investimento se deu não só pelo cachê de juntar três dos maiores artistas de blockbuster atuais, no caso, Dwayne “The Rock” Johnson, Gal Gadot e Ryan Reynolds, como também pelo aspecto à la James Bond, ou seja, de viajar ao redor do mundo e visitar diferentes países e cenários exóticos numa trama típica de ‘ladrão que rouba ladrão ganha 100 anos de perdão’.
A mistura de gêneros de "Alerta Vermelho", como ‘heist’, ação, comédia, 007, aventura e matinée parece inadvertidamente com uma praça de alimentação de shopping, cheia de junk food que enche aos olhos por fora. Porém, ao se olhar o cardápio amiúde, nenhuma comida é excelente, e nem faz bem. Dá leve desarranjo, apesar do barato de comer na hora.
A questão é que muitos desses atributos mais descartáveis foram feitos para a espetacularização da cena em tela grande, como perseguições em alta velocidade, explosões, lutas na contra-luz e com parkour por cima dos prédios. Até mesmo o desenho de som pede por estourar as caixas do cinema com efeito surround por todos os lados, mas quando vistos em casa parecem reduzir o rugido de uma fera a miado de gatinhos fofos. Não que filmes intimistas não mereçam igualmente a telona, pois merecem, mas a recíproca deixa de ser verdadeira quando você tenta botar um parque de diversões dentro de quatro paredes confinadas.
Reynolds (“Deadpool”, 2016) e Johnson (franquia “Velozes e Furiosos”) até funcionam juntos (a ótima piada sobre “Jurassic Park” excede expectativas perante a média de humor que já é baixa e boba). E Gadot até seria mais interessante se de fato fosse a vilã do longa-metragem (uma boa ideia original abandonada ao longo da projeção)... Mas o trio reunido pela primeira vez parece uma desculpa pra juntar azeite e água no orçamento mais caro da história da Netflix sem necessidade... pois nem aparenta ter valido isso.
A conclusão da história, ainda por cima, a misturar “Indiana Jones” com “Jumanji” de 2017 (fase do próprio The Rock, e não o clássico com Robin Williams) se torna tão superficial quanto apoplética, perdendo até mesmo o carisma inicial mais intimista entre cada uma das personagens. Sem falar que as reviravoltas, além de previsíveis, esvaziam o que havia sido construído de bom anteriormente, pois ressignificam o que de melhor funcionou, dando deixa para alguma seqüência desnecessária.
Não obstante, estreou também nas plataformas de streaming um dos mais aguardados filmes de super-herói do ano: “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” de Destin Cretton (“Luta Por Justiça” de 2019). Enfim, os fãs poderão conferir na Disney Plus a bastante adiada empreitada do super-herói oriental que a Marvel agora aposta ao redor do mundo com outros lugares de fala e folclores mis.
E, de fato, a obra traz uma excelente ressignificação de simbologias pop com representatividade asiática e fung fu, como de Bruce Lee a “O Tigre e o Dragão”, “Velocidade Máxima” e até “Homem-Aranha 2” – inclusive, e por falar em desbravar outros territórios, como “Pantera Negra” fez com Wakanda, aqui atualizamos as cidades do Oriente como personagens da trama. Porém..., isso só até a primeira metade, repleta de coreografias impecáveis e mais adrenalina de luta do que o MCU (Universo Cinematográfico Marvel) jamais soube trabalhar. A partir da segunda metade entra a fantasia, e podiam primar com uma nova cosmologia inédita...
No entanto, misturaram o clima apoteótico do final de “Vingadores: Guerra Infinita” com o lúdico clássico “História Sem Fim” pra dar megalomania e esvaziaram um gigante como o vilão Mandarim com potencial de equivalente a de um personagem como Magneto para as franquias de super-heróis (ainda mais com o porte do intérprete Tony Leung, ator assinatura do mestre autoral Wong Kar-Wai). Tudo por causa da mania do MCU de fazer cada exemplar lançado nos cinemas apostar na linguagem do "monstro da semana" (um desafio que é lançado naquele filme e encerrado no próprio, não voltando mais), ao invés de incrementar a mitologia ao longo prazo.
É inegável a emoção lírica de reverências asiáticas como a cena à la “A Viagem de Chihiro”, com um raro dragão de água nos cinemas, quase transformada em “Como Treinar o seu Dragão” (não é demérito, só desvio de rota desnecessário em time que estava ganhando), mas isso acaba tirando o foco do kung fu, principal atributo do filme, para virar hocus pocus de CGI. Nada contra, mas aqui menos teria sido mais, pois até bichinhos fantásticos pareceram aludir forçosamente a “Avatar” a partir de determinado momento (é de se ficar imaginando a cabeça de produtor bilionário mandando acrescentar ao invés de reduzir, como se o único caminho fosse pra cima). Além de que o grande ator oscarizado Ben Kingsley foi uma boa piada interna inicial (alguém lembra a participação anterior dele na Marvel em “Homem de Ferro 3”?),só que esticada demais, sem substância pra fundamentar seu uso.
Vale ressaltar, todavia, que o verdadeiro e principal motivo de parabéns do filme, decerto, foi terem conseguido encaixar e criar do nada uma personagem decente pra a atriz e comediante Awkwafina (“A Despedida”, 2019), a qual funciona mesmo não servindo pra (quase) nada, e ainda dá personalidade ao protagonista por osmose e levantando a bola pra ele cortar. Soma-se a isso o acerto, principalmente, de não tentarem fazê-la se tornar par romântico de Shang-Chi. Isso foi crucial. Best Friends Forever!
Afinal, esta é uma fórmula até batida de personagem coadjuvante como alívio cômico em filmes de ação que vem de priscas eras, o “buddy cop”, com muitos exemplos cinematográficos, inclusive orientais – vide Jackie Chan, que também está muito presente aqui em referências até diretas, como o uso do casaco de Shang-Chi na luta do ônibus (melhor seqüência), e que é uma das assinaturas do Chan. Ainda assim, é Awkwafina quem excede o estereótipo dos típicos sidekicks de Chan, e não fica sobrando mesmo ao lado das coreografias estilizadas do bailado perfeitamente calculado do ator Simu Liu no papel-título.
É admirável a arte de criar movimento do plano com seu próprio corpo. Torna-se irresistível acompanhar a extrema fisicalidade do quadro, dando vontade de assistir compilados das cenas de embate como a um balé. Até porque podemos ser pacifistas e não ver com os mesmos olhos essas lutas na vida real, mas, emprestadas para o cinema de gênero, sob a direção certa, parecem até musicais dançados.
Com tudo isso, este filme se torna um bom acerto para a nova fase ainda perdida do MCU nos cinemas, mas que merece receber ainda mais desenvolvimento e destaque dos estúdios com os próximos exemplares pra gerar novos clássicos como “Capitão América 2: O Soldado Invernal” de2014 e “Pantera Negra” de 2018. E olha que este exemplar foi lançado primeiramente nos cinemas, mas agora, mesmo na telinha de casa, demonstra funcionar, comprovando que tamanho não é documento, e sim qualidade.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.