A briga entre Globo e Bolsonaro nos aliena do mundo real – Por Raphael Fagundes

Lógico que a liberdade em todo grau deve ser respeitada, mas não podemos perder o foco das relações sociais de produção

Foto: Reprodução/Redes sociais
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Vivemos sob à égide da utopia liberal. As pessoas quando insistem em dizer que o comunismo não deu certo, enganam-se, pois o liberalismo também não deu. De modo que não podemos dizer que o comunismo foi derrotado com o fim da Guerra Fria, mas que a utopia liberal venceu a utopia comunista.

É utopia porque vários aspectos da proposta liberal não existem na prática, como a não intervenção do Estado na economia, a meritocracia, a liberdade etc. As pessoas passaram a depositar sua fé e esperança na utopia liberal e agem guiadas por essa ideia, visando a realização de suas promessas, que, na realidade, são irrealizáveis para a maioria.

Essa utopia liberal é o motor de grande parte da indústria cultural. Governos corruptos, liberdade, a luta individual para se conquistar seus sonhos e a batalha contra os que impedem a realização dessa utopia são o mote de praticamente todos os filmes, romances, peças teatrais, séries de TV e games.

Tal utopia é defendida pela grande imprensa e parte de uma perspectiva lockeana de que a sociedade deve garantir os meios pelos quais o indivíduo possa realizar seus objetivos pessoais. Nada pode impedir que alguém consiga ter sua propriedade, ser feliz etc.

A utopia conservadora também defende este ponto de vista, contudo ela também defende a preservação da tradição para além da questão individual. Assim, a sociedade deve garantir os aspectos tradicionais vistos como uma conquista dos antepassados.

Michael Oakeshott fala sobre o conservadorismo como um elemento emocional para mostrar que o conservador é avesso à mudança: “Uma tempestade que se abate sobre uma paisagem e destrói a vista favorita, a morte de amigos, uma amizade que perde a força, o desaparecimento de hábitos de comportamento, a aposentadoria do palhaço favorito, exílio involuntário, virada na sorte, a perda de habilidade e com ela a substituição na profissão – tudo isso é mudança, e, mesmo que venha com suas devidas compensações, o homem de temperamento conservador invariavelmente não se contentará".[1]

A questão do vínculo afetivo ao que foi conquistado no passado é a base do argumento conservador. O conservador Roger Scruton destaca que “nossa existência como cidadãos, participando livremente na pólis, é possível graças aos vínculos afetivos duradouros às coisas que nos são caras".[2] Os conservadores criticam o fato de não poderem rejeitar o novo, o fato de a Igreja Católica ser proibida de continuar conduzindo as “agências de adoção para crianças” porque é contrária aos “casais homossexuais” violando assim “as cláusulas [liberais] de não discriminação do Direito Europeu".[3]

O liberalismo, por seu turno, é um conceito desvinculado da moral. O comércio é soberano. Pierre Rosanvallon mostra que o termo “comércio”, no século XVIII, século de Adam Smith, “engloba de fato tudo o que dá consistência ao vínculo social, independentemente das formas de poder e autoridade".[4] Ou seja, não é a tradição que promove esse vínculo, como no conservadorismo, mas o comércio.

Ou seja, o liberalismo é a despersonalização das relações sociais. A racionalidade individualista, que se desenvolve desde o humanismo do século XVI e XVII, é o grande ponto. Neste momento, a ideia de indivíduo era definida “como o sujeito de certos padrões e valores fundamentais que nenhuma autoridade extrema deveria desrespeitar”. “O indivíduo, como ser racional, era considerado capaz de encontrar estas formas através de seu próprio raciocínio e, uma vez que tivesse adquirido a liberdade de pensamento, capaz de efetuar a ação que as transformasse em realidade. O dever da sociedade era conceder ao indivíduo tal liberdade e eliminar todas as restrições à sua linha da ação racional".[5] De acordo com Herbert Marcuse, “a sociedade liberal era considerada o ambiente adequado à racionalidade individualista”, pois era necessário um ambiente em que o mais importante fosse algo neutro, no caso o trabalho. Nesta “sociedade do comércio”, aparentemente neutra, compra-se e se vende trabalho.

Nessa sociedade em que se valoriza a eficiência para se chegar ao objetivo pessoal (que de forma geral é o enriquecimento, pois o dinheiro é visto como algo neutro, impessoal) foi se forçando “o competidor mais fraco a submeter-se ao domínio das grandes empresas da indústria mecanizada”, abolindo o sujeito econômico livre.[6]

Hoje essas empresas usam das TIC para a produção, não precisando mais ser donas dos meios de produção, mas apenas do capital. A retórica é da “democratização dos meios de produção (bastaria ter um computador/celular, carro ou mesmo bicicleta para a produção autônoma de renda…)”.[7] É um discurso que transforma o trabalhador em cliente, “alegando liberdade para trabalhar quando, onde e como quiser”. Mas a realidade é bem diferente. Os trabalhadores, nesta lógica perversa, passam a pagar pelos meios de produção para gerar lucros aos que viabilizam o serviço. São, assim, forçados a trabalhar mais...

A ansiedade criada por essa instabilidade material pode ter direcionada as pessoas a um refúgio emotivo, sobrenatural, enfim, fundamentalista conservador?

Nós acreditamos que sim, e isso irá aumentar ainda mais quando a indústria 4.0 adotar a internet 5G, que possibilitará a ampliação das profissões que permitem o contrato intermitente à distância e um trabalho flexível sem a mediação do emprego.

Grande parte da indústria cultural, da imprensa liberal não está preocupada com as transformações morais desencadeadas pela radicalização da modernidade porque são vantajosas para o mercado, pois ampliam a variedade de mercadorias, da força de trabalho etc. Essas transformações morais criam a ilusão de liberdade, perdida desde de a mecanização dos competidores mais fortes, como mostra Marcuse.

O conflito entre liberais e conservadores fortalece a utopia liberal em meio à precarização do trabalho. Contudo, esta precarização fortalece a utopia conservadora. A discussão dos vínculos afetivos e da liberdade identitária toma a dianteira para não trazer para a superfície a discussão da perda dos vínculos empregatícios, os quais asseguravam uma certa estabilidade material. Os liberais oferecem a liberdade moral como compensação e os conservadores a preservação dos valores. E a base da sociedade, a compra e venda do trabalho, cada vez mais precarizado, permanece do mesmo jeito. Portanto, trata-se de uma discussão infrutífera, rodeios que vão dar, no fim, no mesmo lugar.

É desse debate entre conservadores e liberais que a esquerda deve se afastar. Lógico que a liberdade em todo grau deve ser respeitada, mas não podemos perder o foco das relações sociais de produção. A ausência, e até mesmo o apoio à precarização do trabalho, projeto encontrado em ambas as utopias, é o que torna inútil a crítica contra a extrema direita, vinda de um setor da burguesia que tem um grande espaço na imprensa e na indústria cultural. É o que alimenta a polarização. Críticas superestruturais que não atingem a raiz do problema. Até porque, neste ponto, em relação à perda de direitos trabalhistas, tanto conservadores quanto liberais concordam. Não é à toa que Guedes fala da “aliança entre liberais e conservadores”.

O fato é que quanto mais inseguros, não em termos morais, mas materiais, os trabalhadores pobres estiverem, mais seduzidos pela seguridade moral eles estarão. É fácil observar isso no período em que o Brasil estava aquecido economicamente, gerando empregos com uma relativa seguridade. Naquele momento, o antipetismo entre os neopentecostais era pífio. É como nos ensinaram Marx e Engels na ideologia alemã, a vida material condiciona as formas pelas quais as pessoas pensam a vida.


[1] OAKESHOTT, M. Conservadorismo. Belo Horizonte: Âyiné, 2020, p. 119.

[2] SCRUTON, R. Como ser um conservador. Rio de Janeiro: Record, 2020, p. 182.

[3] Id., p. 185.

[4] ROSANVALLON, P. O liberalismo econômico. Bauru, SP: EDUSC, 2002, p. 10.

[5] MARCUSE, H. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In: ______. Tecnologia, Guerra e Fascismo. São Paulo: EDUNESP, 1999, p. 75.

[6] Id., p. 76.

[7] FILGUEIRAS, V. e ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. In: ANTUNES, R. (Org.) Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 63.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.