Conhecendo os Evangélicos Progressistas: Ras André Guimarães – Por Pastor Zé Barbosa Jr

Ras André é incansável na luta contra o racismo e um dos maiores propagadores da Teologia Negra no Brasil; confira a entrevista

Foto: Arquivo Pessoal
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Do alto de seus quase dois metros de altura e seus inconfundíveis dreadlocks, o entrevistado de hoje não passa despercebido onde quer que esteja. Pastor na periferia de Salvador, Ras André Guimarães é daquelas pessoas que encantam aonde chegam. Educador popular, historiador e teólogo, militante do movimento negro, uma das principais referências de teologia negra no Brasil, pastor na periferia de Salvador. Mas, sem perder a doçura, como diria Che, não amolece quando a luta é por Direitos Humanos, principalmente do povo preto e pobre, discriminado pela sociedade em geral, o que, infelizmente, não é diferente no meio “cristão”.

Ras André é incansável na luta contra o racismo e um dos maiores propagadores da Teologia Negra no Brasil, que segundo ele “foi sabotada no Brasil. Basta ver como estamos atrasados nesse debate. A última publicação de James Cone no Brasil foi de quase 35 anos atrás. Imagine se a teologia negra tivesse sido divulgada com qualidade nesse tempo?” Realmente é uma denúncia profética de como a igreja brasileira continua hegemonicamente, em sua liderança (não na sua membresia), branca e racista.

Sem perder a esperança, Ras se apresenta como alguém que defende, anuncia e vive as “boas notícias de Jesus, o favelado de Nazaré. Creio que uma comunidade de fé pode encarnar através do seguimento de Jesus, novas relações sociais, relações de cuidado, relações de afetividade e cura. Acredito na responsabilidade profética que a igreja tem de ser justa e não conivente com o mal.” Ainda entende que sua missão vai além das cercas eclesiásticas: “Sou pastor de todas as pessoas do bairro por entender que o reino de Deus é bem maior que os muros da igreja.”

André Guimarães é categórico ao denunciar, na história, o pecado da católicos e evangélicos na história do Brasil. Não dá pra “passar pano” para instituições que apoiaram (e ainda apoiam) sistemas opressores, ditatoriais e que nunca enfrentou, de fato, chagas internas como racismo, fascismo e tantas outras atrocidades: “o pecado da Igreja brasileira (católicos e protestantes) não é recente. Estamos diante da mesma igreja que foi conivente com o pecado da escravidão, com a organização da desigualdade, ficando aliada de projetos injustos que sustentam o modelo de país que temos hoje. (…) Até hoje os cristãos que participaram do golpe de 1964 não foram responsabilizados pelas vidas que foram brutalmente torturadas.”

O pastor também já atuou com adolescentes em conflito com a lei e privados de liberdade. Um trabalho árduo, ainda mais no Rio de Janeiro (no tempo em que vivia na “Cidade Maravilhosa”): “No sistema socioeducativo tive a oportunidade de ver uma face cruel de uma sociedade que não quer ver jovens pretos viver. Um sistema que a cada dia que passa regride e se transforma um presídio de adolescentes. Situação totalmente contrária ao que prevê o Estatuto da criança e do adolescente.” Incansável, Ras André não desiste em suas lutas por um mundo melhor: “Acredito que cada um de nós deve acompanhar o conjunto de políticas previstas no SINASE. (…) Lutar por uma socioeducação mais humano e menos prisional.”

André ainda denuncia o racismo que sofre dentro das próprias estruturas eclesiásticas protestantes: “Sim, enfrento o racismo tempo todo! Eu luto para que meus irmãos e irmãs em Cristo não minimizem o sofrimento dos milhares de pretos e pretas desse país. Sinto o peso do racismo quando me apresento como pastor metodista. Percebo alguns olhares de reprovação e até mesmo de desprezo. Como pode um pastor com "dreadlocks"? (…) A igreja no Brasil reproduz a estrutura da sociedade brasileira. As mesmas táticas silenciosas de subalternização acontecem dentro da igreja.” E não reduz sua luta ao campo evangélico, Ras também combate o racismo religioso com outras religiões, principalmente de matrizes africanas: “O mesmo racismo que subalterniza o preto a igreja é o mesmo que alimenta o ódio contra as religiões de matriz africana. (…) Os cristãos precisam saber de perto sobre os impactos psicológicos da intolerância religiosa numa criança que frequenta a escola e sofre ataques porque está usando branco. (…) A intolerância religiosa promove danos irreparáveis e isso precisa ter fim.”

Que o Jesus favelado de Nazaré continue levantando homens e mulheres como Ras André. O mundo é bem melhor e ainda resiste a tanta maldade por conta deles. Que se multipliquem!

LEIA A ENTREVISTA NA ÍNTEGRA

Ras André, você trabalha numa igreja na periferia de Salvador. Só isso já basta pra dizer que você atua onde a vida acontece de fato, onde os preconceitos se mostram na carne (e na cor). O que é ser pastor nessa realidade?

Primeiramente, eu quero agradecer pela oportunidade do diálogo e estou muito feliz de poder conversar contigo. Coisas tão importantes que estão à nossa porta. Eu acredito nas boas notícias de Jesus o favelado de Nazaré. Creio que uma comunidade de fé pode encarnar através do seguimento de Jesus, novas relações sociais, relações de cuidado, relações de afetividade e cura. Acredito na responsabilidade profética que a igreja tem de ser justa e não conivente com o mal. E isso tem implicações concretas na minha vida e no meu cotidiano. Ser pastor preto com esse entendimento num bairro como o Engenho Velho da Federação em Salvador é um grande desafio. Pois não sou pastor apenas das pessoas arroladas no rol de membros. Sou pastor de todas as pessoas do bairro e por entender que o reino de Deus é bem maior que os muros da igreja.

Quando você percebe parte da igreja brasileira vendida a Bolsonaro e a tudo de ruim que ele representa, e que repercute de forma inegável no meio onde você está inserido, o que pensa? Tem como mudar isso?

É importante dizer que o pecado da Igreja brasileira (católicos e protestantes) não é recente. Estamos diante da mesma igreja que foi conivente com o pecado da escravidão, com a organização da desigualdade, ficando aliada de projetos injustos que sustentam o modelo de país que temos hoje. Essa igreja perseguiu os profetas e profetisas que denunciaram seus pecados. Até hoje os cristãos que participaram do golpe de 1964 não foram responsabilizados pelas vidas que foram brutalmente torturadas. Pelos inocentes que foram criminalizados por estarem comprometidos com a promoção da vida e justiça do reino de Deus. Quando olhamos para o tempo presente, não podemos esquecer que essas pessoas que contribuíram com esse cenário trágico da história brasileira continuaram nas igrejas. Muitos ocupando cargos estratégico nas denominações e dos seminários. Penso que o cenário de hoje é na verdade uma continuação desse grupo que permaneceu nas igrejas. O Bolsonarismo dentro das igrejas é uma atualização de discursos antigos já conhecido por nós. Como mudar isso? Essa pergunta é difícil sabe! Porque envolve seriedade e compromisso. A igreja no Brasil precisa retornar ao "primeiro amor" citado em Apocalipse 2.4-5. Precisamos seguir a Jesus de Nazaré de verdade e assumir o que Jesus assumiu! Não dá para ser algo negociado, algo em cima do muro. Seguir a Jesus de Nazaré implica tomar posição pela vida, justiça e responsabilidade de amar e cuidar das pessoas. Jesus olhando para o povo sofrido de seu tempo disse que eram ovelhas sem pastor. Olhando para o presente podemos dizer que essa frase de Jesus está desatualizada?

Você é, hoje no Brasil, um dos nomes que se pensa quando se fala da TEOLOGIA NEGRA. O que isso significa? O que essa teologia propõe? Qual a importância dela no Brasil?

Gratidão pelo carinho e por sua consideração. Gosto de pensar a teologia negra como uma resposta teológica, bíblica e pastoral dos povos pretos ao mito da igualdade cristã promovido pela branquidade. A proposta da teologia negra cristã (é importante lembrar que existem "teologias negras" que dialogam com as múltiplas experiências de fé, não apenas com a fé cristã) é dizer que o povo preto tem uma teologia, tem uma forma de ler a Bíblia e um jeito de ser comunidade de fé. A teologia negra foi sabotada no Brasil. Basta ver como estamos atrasados nesse debate. A última publicação de James Cone no Brasil foi de quase 35 anos atrás. Imagine se a teologia negra tivesse sido divulgada com qualidade nesse tempo? Muitas pastoras e pastores que atuaram no combate ao racismo em suas denominações foram silenciados e perseguidos. Hoje eu vejo com alegria o debate sobre T.N e os movimentos que a T.N animou. A igreja brasileira está sendo confrontada dos seus pecados raciais e a T.N está cooperando com isso.

Você enfrentou/enfrenta racismo dentro da igreja evangélica brasileira? Tem algum(s) caso(s) marcante(s) disso?

Sim, enfrento o racismo tempo todo! Eu luto para que meus irmãos e irmãs em Cristo não minimizem o sofrimento dos milhares de pretos e pretas desse país. Sinto o peso do racismo quando me apresento como pastor metodista. Percebo alguns olhares de reprovação e até mesmo de desprezo. Como pode um pastor com "dreadlocks"? Como pode um pastor ficar falando de algo que é a igreja não pratica? Hoje eu sei exatamente como foi a luta dos pastores e pastoras que me antecederam. De como foram adoecendo diante desse bombardeamento sutil. A igreja no Brasil reproduz a estrutura da sociedade brasileira. As mesmas táticas silenciosas de subalternização acontecem dentro da igreja. E digo que o racismo é diabólico por ser algo que te mata por dentro.

Um dos enfrentamentos do racismo também passa pelo racismo religioso, principalmente em relação aos irmãos e irmãs de religiões de matrizes africanas. Como você encara isso? Como estabelecer o diálogo inter-religioso?

Acredito que precisamos unir forças e construirmos ações que denunciem e responsabilizem práticas racistas. O racismo atua em todas as estruturas e contra os pretos em todas as estruturas. O mesmo racismo que subalterniza o preto a igreja é o mesmo que alimenta o ódio contra as religiões de matriz africana. Nós pretos e pretas e todos aqueles que desejam um mundo sem racismo precisamos promover ações educativas que envolvam escutas e sensibilize as pessoas que a intolerância religiosa é um tentáculo do racismo. Promover campanhas permanentes é um caminho imprescindível. Envolver as lideranças cristãs nessa luta é um dos caminhos. Os cristãos precisam saber de perto sobre os impactos psicológicos da intolerância religiosa numa criança que frequenta a escola e sofre ataques porque está usando branco. Os cristãos precisam saber sobre o impacto psicológico de uma pessoa que precisa negar sua fé para conseguir emprego. A intolerância religiosa promove danos irreparáveis e isso precisa ter fim.

Você já trabalhou com Adolescentes em conflito com a lei e privados de liberdade. Fale um pouco dessa realidade e como isso reflete na sociedade brasileira. O que poderia ser feito pra mudar esse quadro?

O Brasil é um país bastante perverso. Falamos que temos amor pela juventude, quando vamos ver que juventude é essa percebemos que não são os nossos jovens pretos. Eu tive a oportunidade de conhecer o sistema socioeducativo através da pastoral de juventude em conflito com a lei coordenada na época pela Reverenda Kaká Omowalê. Eu vi um mundo totalmente paralelo em que não tem nenhuma ideia como funciona. No sistema socioeducativo tive a oportunidade de ver uma face cruel de uma sociedade que não quer ver jovens pretos viver. Um sistema que a cada dia que passa regride e se transforma um presídio de adolescentes. Situação totalmente contrária ao que prevê o Estatuto da criança e do adolescente. Acredito que cada um de nós deve acompanhar o conjunto de políticas previstas no SINASE. Acompanhar os debates dos conselhos que acompanham o sistema socioeducativo e fiscalizar o cumprimento do ECA nos Estados e municípios. Lutar por uma socioeducação mais humano e menos prisional

Você participa de vários coletivos de negros evangélicos (pouca gente sabe da luta negra de movimentos evangélicos). Quais as principais pautas desses grupos? Quais as ações práticas? Enfrentam muita resistência dos setores mais conservadores da igreja? E dos progressistas?

Eu considero esses movimentos como braço orgânico da Teologia Negra. Nestas organizações nosso povo tem a oportunidade de receber formação e articulação em rede. A pauta do movimento negro evangélico é a denúncia do pecado do racismo nas igrejas e a reparação das igrejas evangélicas ao povo preto desse país. Essa reivindicação é uma afronta aos interesses branquidade dentro das igrejas. O racismo é algo que unifica os conservadores e alguns setores progressistas. Por incrível que pareça ainda hoje ouvimos tentativas de desqualificação do movimento dos pretos cristãos. Do setor progressista ouvimos que a questão racial é secundária. Os conservadores ouvimos que estamos dividindo a igreja. Uma falácia clássica! A grande verdade é: quem divide a igreja é o pecado do racismo

Por fim, que mensagem você deixaria aos leitores da Revista Fórum, nesses dias tão terríveis de bolsonarismo, racismo e tanta coisa absurda?

Meu recado é: amem uns aos outros! Odeiem as injustiças e pratiquem o bem. Vamos abraçar e acolher os que sofrem, não podemos mais ficar distraídos. Se cada um, cada uma doar tempo e escuta aos que estão em sofrimento, creio eu que já estaremos resistindo com qualidade nesses tempos sombrios. Gratidão pela oportunidade. Paz e bem!

Na próxima sexta-feira, tem mais evangélica progressista para conhecermos…

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum