Nos últimos meses, o serviço de streaming Disney+ lançou duas séries que me pareceram projetos bastantes semelhantes. What if?, primeira produção animada do chamado Universo Cinematográfico da Marvel, e Star Wars: Visions, uma coletânea de curtas-metragens de animação de múltiplos autores ambientada no universo de Star Wars.
As duas se enquadram no gênero de séries antológicas, em que cada episódio sustenta uma narrativa independente uma da outra (embora What if? faça uma reversão da estrutura antológica nos dois episódios finais). A semelhança dos dois projetos, no entanto, vai além, e passa por uma questão econômica/de mercado comum.
A Disney, detentora dos direitos de criação dos dois universos (Star Wars e a maior parte da Marvel), tem uma necessidade econômica de explorar as possibilidades criativas desses dois domínios ficcionais. Isso, é claro, não é uma questão que atravessa apenas a Disney, no que vários outros estúdios são cada vez mais demandados a explorar seus próprios arquivos criativos para tirar o máximo possível deles.
A questão que diferencia esses dois projetos de uma tendência maior nesse sentido, no entanto, é que ambos são consequências diretas da abrangência de cada um desses arquivos ficcionais. A Marvel tem 80 anos de publicações contínuas, em que se criam personagens, narrativas, lugares e, enfim, mundos ficcionais que podem ser aproveitados a um nível quase ilimitado. E Star Wars é uma presença relevante na rede de narrativas de ficção científica e fantasia desde 1977, decorrendo em criações constantes no cinema, na televisão, nos jogos digitais e nas histórias em quadrinhos.
Os dois universos ficcionais-midiáticos também estabeleceram uma rede muito consistente de interações entre criadores, fãs e indústria através do tempo, o que gera expectativas diversas para cada projeto anunciado e um constante exercício de recuperação do arquivo, com resgate de personagens esquecidos, adaptações legadas à obscuridade etc.
Pensando isso, os dois projetos representam um potencial de trabalho rigoroso com esse arquivo midiático. What if?, como o nome sugere, imagina personagens da Marvel em situações alternativas dadas em universos paralelos (que coabitam o que eles chamam de multiverso), o que já é uma tradição narrativa dos quadrinhos, que lançam números ou até arcos inteiros ambientados nesses outros universos, nessas alternativas para os personagens conhecidos e menos conhecidos.
Star Wars: Visions já é um projeto diferente nesse ponto, pois não se embasa nas alternativas criadas para personagens conhecidos, mas justamente na possibilidade de criações originais dentro do imaginário originado por décadas de mitologia Star Wars.
O projeto é tornado mais interessante por ser feito em colaboração com nove estúdios de animação japoneses, cada um apresentando sua própria leitura do amplo legado midiático da franquia. Essa escolha se justifica na enorme influência que o cinema japonês, especialmente do gênero de samurai e dos filmes de Akira Kurosawa, tem para a criação de Star Wars por George Lucas em primeiro lugar. A aproximação era tanta que poderíamos até mesmo entender o primeiro Star Wars, um dia simplesmente chamado Guerra nas estrelas, como um belo pastiche de A fortaleza escondida (dir. Kurosawa, 1958).
A relação de Star Wars com o imaginário do cinema japonês não é ausente de problemáticas (que inclui uma considerável desigualdade econômica e de distribuição entre esses dois cinemas), mas o método de entregar esse imaginário para novas criações autorais desses estúdios deve ser celebrado como uma das respostas mais interessantes da indústria hollywoodiana contemporânea para lidar com essa demanda de criação contínua. Isso não apenas porque eles compartilham de uma cultura audiovisual que influenciou Star Wars (embora esse contexto seja também relevante para a justificação do projeto), mas porque se possibilita desenvolvimentos criativos mais localizados para fora do eixo autoral dos EUA.
Por isso, Visions resulta em um projeto muito mais interessante que What if?, no que este falha bruscamente em explorar outras possibilidades e parece apenas criar situações para entregar mais do mesmo em termos do que já temos visto dos filmes da Marvel nos cinemas nos últimos 13 anos. Tratam-se dos mesmos personagens distribuídos massivamente nos cinemas em situações muito semelhantes àquelas nas quais eles estabeleceram o seu grande retorno de bilheteria.
Quando consideramos que, na tradição da Marvel nos quadrinhos, o What if? sempre se apresentou como uma possibilidade de apresentar narrativas dissidentes, enfatizando ou recriando personagens secundários que estão envolvidos em dinâmicas narrativas queer, representações raciais diversas e questões estéticas que não encontravam espaço nas revistas que recebiam maior investimento da editora, What if?, a série, revela-se só mais um capítulo de um projeto sem nenhum interesse de jogar fora do campo hegemônico dos discursos e da linguagem.
É uma pena, afinal, que projetos tão semelhantes não se informem de maneira a sugerir um futuro mais criativo, experimental e diverso para essas narrativas. Podemos sempre contar com esses acidentes de percurso. Podemos, no entanto, também reconhecer que essas narrativas são nossas e nos apropriar delas, como já é reivindicado por diversas experiências de espectatorialidades dissidentes de narrativas do mainstream.
Fan fics, fan arts e grupos de discussão crítica desses produtos, tudo isso produzido por “aficcionados” por essas narrativas, já estão descentralizando as suas unidades de criação há muito tempo. O entendimento de que esses produtos do imaginário devem ser parte do domínio público se dá na conclusão de que eles são parte do domínio público, no que essas narrativas já fazem parte de repertórios difundidos globalmente (nunca sendo incorporados da mesma maneira).
É preciso retomar essa pauta, reconhecer um direito de criação mais amplo e a prática recorrente desse direito por fãs, espectadores e leitores. Se esperamos cada vez mais criações em torno dessas narrativas, elas não devem ser determinadas por um mesmo e restrito interesse econômico, elas devem, e vão, incorporar as proposições estéticas de seus espectadores-autores, seja ou não do interesse do mercado.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.