Um dos maiores erros que os críticos cometem é a generalização dos evangélicos. Sim, aqui cabe o conceito de “nem todo evangélico é...” porque realmente é assim. Os evangélicos não são unívocos, nem mesmo únicos. Há uma enorme pluralidade de ideias, doutrinas, ações e até mesmo interpretações sobre o Livro Sagrado: a Bíblia. Sem contar as inúmeras teologias (sim, teologiaS, assim, no plural), como a Teologia Negra, a Teologia Feminista, a Teologia da Missão Integral (uma equivalente da Teologia da Libertação no meio protestante), a Teologia Queer, entre outras. E, claro, como um reflexo do contexto onde está inserido, também há a diversidade política. Muitos (muitos mesmo, acredite!) evangélicos não compactuam com Bolsonaro e nem com seus ideais perversos, violentos e, por que não dizer, anticristãos.
Pois a partir de hoje, entrevistarei, toda semana, um líder cristão que não se rendeu ao bolsonarismo. Creio que é importante que multipliquemos essas vozes em momentos tão tenebrosos quanto os que vivemos hoje no Brasil. É urgente que se dispute esse lugar até então ocupado por bandidos da fé como Malafaia, Feliciano e outros. Vozes dessa fé progressista, humana, militante, merecem ser multiplicadas e celebradas e é isso que essa coluna se propõe a fazer.
Hoje, conversamos com o pastor Ricardo Gondim Rodrigues, da Igreja Betesda, na Zona Sul de São Paulo (a Igreja Betesda está espalhada em várias cidades e estados brasileiros). Ricardo é teólogo, mestre em Ciências da Religião, escritor de mão cheia e há tempos vem denunciando esse evangelicalismo doentio que hoje muita gente se apavora ao perceber. É uma voz corajosa em tempos de covardia e apatia. Ele se considera “um exilado do movimento evangélico”, desde que assumiu posturas teológicas divergentes da “maioria”, como “a crença literal no Gênesis e o ensino de que um casal histórico e primeiro da criação” e a “teologia medieval da Soberania divina que pressupõe Deus, como um régio Senhor, controlando todos os mínimos detalhes da história.” Questionamentos como esses fizeram com que muitos tivessem Gondim como um “inimigo da fé”.
Ricardo Gondim traz em sua história familiar a resiliência como marca: seu pai, militar, foi preso e torturado depois do Golpe de 64, ao permanecer fiel à democracia e ao presidente João Goulart. A coerência e a coragem de assumir suas decisões, aprendidas com o pai, lhe acompanham até hoje: “Rompi com a igreja católica ao ler os Evangelhos. Rompi com a Igreja Presbiteriana devido à experiência pentecostal. Rompi com a Assembleia de Deus devido a minha percepção da liberdade. E agora rompo com o movimento evangélico por questões teológicas, éticas e programáticas.”
Em 2011, Gondim escreveu um texto que viralizou. O título já era um alerta: “Deus nos livre de um Brasil evangélico”. “Não houve nenhuma premonição da minha parte (ainda não possuo o dom de prever o futuro).”, afirma o Pastor, “Eu notei tão somente que a teologia que se tornava hegemônica entre evangélicos abarcava elementos expansionistas. O conversionismo (proselitismo) do movimento evangélico pressupõe “colocar pessoas cristãs em postos chaves da sociedade civil, militar e cultural” para que a “bênção de Deus” venha sobre o país. (...) a ideia de que um país só experimenta “ordem e progresso” caso as pessoas “salvas e nascidas de novo” consigam impor comportamentos sexuais, modos de organizar família e percepções sobre cultura.” Infelizmente, o texto virou uma triste profecia...
Para o pastor Ricardo, “o bolsononarismo foi um projeto bem arquitetado por mentes ideologicamente argutas; é um movimento nazifascista que se apoia em um tripé: economia neoliberal, policialização da sociedade e moralismo. (...) Setores religiosos, espantados com divulgação de fake news de que “homossexuais tinham uma agenda para destruir a família” e com a ameaça de uma promiscuidade generalizada que “visa às crianças”, o conservadorismo religioso partiu para a briga, dando cartas brancas ao presidente para que implantasse um regime em guerra contra um tal de “marxismo cultural”, que teria origem demoníaca.”
Gondim é uma das vozes mais conhecidas e respeitadas da “Fraternidade do Evangelho”, um grupo de lideranças cristãs antibolsonaristas, com vozes das mais diversas teologias, mas com uma coisa em comum: não se calar diante de um governo de morte, destruição e horror. “Sentimos que a hora de dizer não chegou e toda demora pode vir tarde demais. (...) Nesse coletivo, almejo me irmanar a mulheres e homens que traçaram um risco no chão existencial e não toleram que o fanatismo casado à intolerância, bem como o ódio irmanado ao desdém cresçam até o ponto de nos asfixiar. Recusemos, assim, entregar a história nas mãos de gente baixa, vil, medíocre e perversa”, afirma o Pastor.
Por fim, Ricardo nos convida à luta, a não nos calarmos diante da barbárie. “Para isso, lembremos que nossa luta não é contra pessoas, mas contra os sistemas malvados que provocam tanto sofrimento e morte. Portanto, mãos à obra.”
Para quem quiser seguir o pastor Ricardo Gondim (eu recomendo!) ele está nas seguintes redes:
Instagram https://www.instagram.com/ricardogondim/
Twitter https://twitter.com/gondimricardo
LEIA A ENTREVISTA NA ÍNTEGRA:
Ricardo, há 10 anos você escreveu um texto que viralizou e causou um rebuliço no meio evangélico brasileiro, intitulado “Deus nos livre de um Brasil evangélico”. O que sente, 10 anos depois, ao perceber que seu texto está se cumprindo como profecia?
“O texto foi profético sem que eu percebesse. Não houve nenhuma premonição da minha parte (ainda não possuo o dom de prever o futuro). Eu notei tão somente que a teologia que se tornava hegemônica entre evangélicos abarcava elementos expansionistas. O conversionismo (proselitismo) do movimento evangélico pressupõe “colocar pessoas cristãs em postos chaves da sociedade civil, militar e cultural” para que a “bênção de Deus” venha sobre o país. Lá atrás, notei que a Teologia do Domínio dos calvinistas norte-americanos criava consistência entre os pentecostais daqui; com o enriquecimento, expansão numérica e poder político dos neopentecostais, logo vi que a ideia de que um país só experimenta “ordem e progresso” caso as pessoas “salvas e nascidas de novo” consigam impor comportamentos sexuais, modos de organizar família e percepções sobre cultura. A Teologia do Domínio crê que Deus ordenou ao primeiro casal, Adão e Eva, que cuidasse do jardim antes deles pecarem; portanto, só as pessoas já redimidas têm condições de governar sobre um povo; essa teologia ainda crê que as pessoas não convertidas (membros de outras religiões, agnósticos e ateus) jamais conseguiriam cumprir a vontade de Deus com respeito a questões complexas como economia, cuidado sócio-ambiental e contenção da criminalidade já que a princípio rejeitaram a Deus. Lógico que essas percepções estão equivocadas, mas elas jazem nas premissas muito sólidas do movimento evangélico. Eu vi lá atrás que o movimento tem pretensões teocráticas.”
Em que momento de sua vida se deu essa virada por uma teologia mais aberta, libertária e provocativa? O que isso lhe custou?
“Na verdade, eu me considero exilado do movimento evangélico. O processo de desmonte de meu fundamentalismo foi lento e o processo, como não poderia ser diferente, traumático. Primeiro, comecei a questionar algumas premissas doutrinárias. Vi que os edifícios teológicos da grande maioria das igrejas se firmavam em pedras bem porosas. O dogma do pecado original se esfarelou em minhas leituras sobre a espiritualidade judaica (Jesus era judeu). A crença literal no Gênesis e o ensino de que um casal histórico e primeiro da criação, não possuíam lastro na espiritualidade semita, sem sequer ser cogitada por Jesus. Abandonei a antropologia pessimista. Chamar as pessoas de pecadoras passou a não fazer sentido algum para mim que (não repito o conceito da Tábula Rasa de Russeau) acredito na ambiguidade humana, capaz de virtudes esplêndidas e de vícios monstruosos. Também questionei a teologia medieval da Soberania divina que pressupõe Deus, como um régio Senhor, controlando todos os mínimos detalhes da história. Puxei alguns desses fios e não me intimidei em continuar a desenrolá-los do novelo das certezas.”
Seu pai foi preso político e fez parte dos militares que resistiram ao golpe, defendendo o presidente João Goulart. O que isso influencia na sua “militância”?
“Certamente, meu pai foi preso nos primeiros dias do golpe. Nossa vida familiar bagunçou de vez e sofremos muito devido às inúmeras consequências de sua prisão e tortura. Ser filho de um “subversivo” de 1968 em diante era um estigma terrível. Mas, devido aos posicionamentos de meu pai, aprendi a não me encolher diante com autocensuras quando me vejo patrulhado. Meu pai me ensinou: ser coerente com a própria consciência vale mais que o conforto dos covardes. Coincidente com a biografia do meu pai, minha trajetória religiosa se deu com muitos traumas. Rompi com a igreja católica ao ler os Evangelhos. Rompi com a Igreja Presbiteriana devido à experiência pentecostal. Rompi com a Assembleia de Deus devido a minha percepção da liberdade. E agora rompo com o movimento evangélico por questões teológicas, éticas e programáticas.”
Na sua percepção, como se deu a pavimentação dessa estrada que conduziu boa parte da igreja evangélica brasileira ao bolsonarismo?
“O bolsononarismo foi um projeto bem arquitetado por mentes ideologicamente argutas; é um movimento nazifascista que se apoia em um tripé: economia neoliberal, policialização da sociedade e moralismo. Assim como aconteceu na Itália na década de 1920, diferentes setores foram seduzidos. Para a economia foi proposto um modelo econômico com a precarização do trabalho e o enxugamento brutal do Estado junto à promessa de mais lucros para a elite rica. Diante de um povo assustado com a violência urbana e expansão do crime organizado e facções criminosas, foi prometido um Estado armado junto ao fortalecimento da polícia e ampla divulgação de que os cidadãos precisam também se proteger com suas próprias pistolas. Setores religiosos, espantados com divulgação de fake news de que “homossexuais tinham uma agenda para destruir a família” e com a ameaça de uma promiscuidade generalizada que “visa crianças”, o conservadorismo religioso partiu para a briga, dando cartas brancas ao presidente para que implantasse um regime em guerra contra um tal de “marxismo cultural”, que teria origem demoníaca.”
Como é ser um pastor “progressista” nesse momento da história brasileira, onde uma grande parte dos líderes, pastores e igrejas se vendeu ao bolsonarismo?
“Ser um pastor progressista é assumir que o seguimento de Jesus sempre foi minoritário e de resistência. Igrejas riquíssimas dominam horários na televisão, compram rádios, imprimem livros e têm cantores famosos. Acontece que tais igrejas rifam a alma para tamanho sucesso. Talvez os líderes evangélicos não tenham percebido ainda que a maior riqueza que a religião pode ter é sua credibilidade. O que acontece com a maioria das lideranças que estão abraçadas ao atual regime é não perceberem que serão arrastadas ao descrédito junto com os políticos que chancelam.”
Vários movimentos, coletivos a grupos evangélicos têm se levantado contra Bolsonaro e suas hordas de terror e morte. Você é um dos pastores mais conhecidos de um desses movimentos: a Fraternidade Evangélica. O que você espera desses movimentos? Quais as estratégias e possibilidades que você vê adiante a partir desses levantes?
“A Fraternidade do Evangelho começou agora e deseja agregar pessoas de diferentes campos de atuação, evangélicos, católicos romanos e até ateus. Sentimos que a hora de dizer não chegou e toda demora pode vir tarde demais. O basta peremptório de gente que tem compromisso com a vida deve se anteceder às desgraças vindouras. Nesse coletivo, almejo me irmanar a mulheres e homens que traçaram um risco no chão existencial e não toleram que o fanatismo casado à intolerância, bem como o ódio irmanado ao desdém cresçam até o ponto de nos asfixiar. Recusemos, assim, entregar a história nas mãos de gente baixa, vil, medíocre e perversa. Considero hoje meus irmãos e irmãs não aqueles que confessam o mesmo credo que eu, mas os que têm fome e sede de justiça a partir de um coração solidário e compassivo.”
Por fim, que mensagem você gostaria de deixar para os leitores da Fórum e para a nação brasileira?
“Não repito frases de positividade. Não sou inconsequente em achar que “logo isso tudo vai passar”. O desmonte e o caos foram grandes e temos um longo caminho pela frente no sentido de consertar o Brasil. Portanto, devemos começar imediatamente. Por enquanto, a tarefa consiste em não debandar com individualismos e não deixar que nos fatiguem com questões de menor importância. Para derrotar essa hidra que assombra o Brasil, não basta cortar uma só cabeça, mas ir ao cerne e encontrar o que a alimenta. Para isso, lembremos que nossa luta não é contra pessoas, mas contra os sistemas malvados que provocam tanto sofrimento e morte. Portanto, mãos à obra.”
Semana que vem conheceremos mais uma liderança cristã progressista. Até lá!