Na semana passada, com a demissão de boa parte da equipe do ministro da Economia Paulo Guedes, cresceu a sensação de que o Brasil é um barco à deriva. E essa sensação atingiu não só setores das classes dominantes, mas também setores populares.
Dois grupos disputam a condução da economia: de um lado, o chamado Centrão; do outro, o mercado financeiro. Estão juntos no apoio a Bolsonaro e em relação a outras questões relevantes, mas batem cabeça com frequência.
O capital financeiro sustenta uma política ultraneoliberal pura e dura, que detona o Estado, e defende a entrega do patrimônio público, a destruição dos serviços prestados à população e a privatização de tudo o que for possível. Quer cortar ao máximo o investimento nos serviços essenciais e considera o chamado teto de gastos uma pedra de toque, uma espécie de regra de ouro sem a qual o país naufragaria.
Já o Centrão, como vive da rapinagem dos cofres públicos, precisa que sejam feitos gastos. Além disso, seus integrantes disputam eleições e se incomodam com a impopularidade de um governo com o qual são identificados. Por isso, defendem medidas emergenciais de ajuda aos mais pobres. Não por humanismo, claro, mas por interesse eleitoral.
Bolsonaro se equilibra entre os dois. Precisa do grande capital financeiro. Mas o principal objetivo do presidente é a reeleição. Bolsonaro não é propriamente um neoliberal clássico, embora sua política econômica tenha essa marca. Seu senso de sobrevivência política o faz dar importância a projetos que possam lhe trazer votos, como é o caso do sucedâneo do Bolsa Família - que é um programa de renda mínima.
A proposta de Bolsonaro viria com um nome novo – Auxílio Brasil. A mudança do nome ajudaria a marcar o nome do atual presidente como o seu criador. O Centrão, cujos membros vão disputar eleições daqui a um ano e apostam suas fichas num novo mandato de Bolsonaro, o apoia.
Essas divergências levaram à saída de boa parte de equipe econômica, quando Bolsonaro não lhe deu ouvidos e confirmou a criação do tal auxílio, furando o chamado teto de gastos.
O fato é que a queda-de-braço entre esses dois segmentos tem gerado tensões permanentes, como a da semana passada. E continuarão a gerar.
Outra queda-de-braço tem data marcada. Os caminhoneiros anunciam um movimento para novembro, em protesto contra a criminosa política de preços dos combustíveis (a gasolina e diesel já tiveram mais de 70 reajustes esse ano!). Bolsonaro dá mostras de que estaria disposto a ceder para evitar manifestações críticas ao governo.
Ora, em qualquer debate quem define os termos em que ele será travado sai na frente. Quem fala em “austeridade”, em “não aceitar desperdício” ou “não gastar mais do que se arrecada” passa uma impressão de sensatez. Afinal, quem não quer um governante equilibrado, em vez de um perdulário irresponsável?
Para tal, um argumento muito usado vem da comparação entre a economia do país com o orçamento doméstico, com as finanças de uma família. Só que são coisas diferentes. Há uma infinidade de mecanismos que diferenciam o manejo das contas da Dona Maria da administração da economia de um país como o Brasil.
Claro que o equilíbrio fiscal do país é importante, mas as formas de chegar a ele são muito diferentes das de uma economia doméstica.
Para usar apenas um exemplo simples: sem estimular o consumo de massas – e isso exige ação do Estado - não se recupera a economia. Assim, a instituição de um auxílio emergencial para os mais pobres não é só um mecanismo para que se diminua a fome e a miséria. Esse auxílio e outras ações do Estado na política econômica vão alavancar o mercado interno, sustentar o crescimento econômico, criar empregos e viabilizar muitos pequenos empreendimentos.
Por isso, os segmentos progressistas têm que entrar nessa discussão e mostrar que a proposta de um auxílio emergencial de, pelo menos, R$ 600, é a mais acertada. E não só por razões humanitárias - ainda que isso seja também relevante!
Não se pode permitir que passe para a opinião pública a impressão de que quem é responsável e sensato deve apoiar o teto de gastos e compactuar com o arrocho e a miséria de milhões de pessoas que já vivem gigantescos dramas diários por conta do desemprego e da fome.
Não há uma e uma só política econômica “correta”. Não estamos diante das operações da aritmética, quando dois mais dois sempre são quatro.
E mais: qualquer alternativa que se escolha vai favorecer determinados interesses na sociedade. É bom que se saiba e se diga claramente quais são os segmentos favorecidos.
Assim, cabe a pergunta: se um país precisa mesmo diminuir gastos, por que não cortar privilégios de poderosos (os bancos e os grandes capitalistas, juízes, militares, parlamentares, entre outros), em vez de arrochar ainda mais os de baixo? Por que as tais "emendas de relator" - R$ 34 bilhões - do orçamento secreto são intocáveis? Em tempo: um Bolsa/Auxílio de R$ 600/mês representaria apenas 2,9% do Orçamento da União, previsto em R$ 4,3 trilhões para 2022.
Como se vê, as coisas na economia política são mesmo muito diferentes das que acontecem nas contas domésticas da Dona Maria.
O sociólogo Luís Eduardo Soares foi preciso ao criticar esse culto dos poderosos ao teto de gastos: “Os membros demissionários do Ministério da Economia aceitam conviver tranquilamente com a devastação da Amazônia, as ameaças à sobrevivência das sociedades originárias, o golpismo, o negacionismo, a abordagem criminosa da pandemia, o racismo, a fome, o desemprego, o desamparo, o desespero de milhões. Agora, romper teto de gastos, isso não. Essa a moralidade de nossa elite.”
Luiz Eduardo tem toda a razão.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.