Do lado de cá, à esquerda do espectro ideológico, estamos mais que habituados às chicotadas de penitência. A todo momento criticamos uns aos outros, certos de que sabemos o que falta, o que deve ser feito para superar o ciclo de derrotas inaugurado em 2016.
Mas não é dos problemas do lado de cá que falo aqui, não hoje. Quero mesmo é falar dos impasses do lado de lá, à direita do muro. Também eles têm seus problemas e não são poucos. Basta lembrar que em 2018, antes de derrotar do PT, Bolsonaro derrotou a dita “direita tradicional”, ou a “direita democrática”.
O que não faz um bode na sala? Os articuladores do golpe parlamentar de 2016, da violência institucional que começou a demolir nosso sistema político, se tornam “democráticos”. Nas crises, o tempo passa mais rápido e o mundo mais que gira. Capota!
Bem, fato mesmo é que Bolsonaro foi mais destrutivo para a “direita tradicional”, hegemonizada pelo PSDB desde a década de 1990, do que para o próprio PT. O PT ainda tá aí, menor que antes, sem dúvida, mas ainda soberano no seu campo. Já o PSDB está remando para a voltar a ser o que era: o dono da direita. João Doria, governador de São Paulo, está liderando o contra-ataque.
Hoje, o grande conflito da política brasileira está sendo travado entre Tucanismo e Bolsonarismo. Doria X Jair Bolsonaro.
A esquerda está discreta. Lula está discreto, estrelando documentário em Cuba, fora das conversas internacionais sobre o processo de importação das vacinas. Até Temer saiu da tumba pra negociar importação de insumos farmacêuticos com o governo chinês. Sim, de fato, a esquerda está discreta, discretíssima. Basta saber se por estratégia ou por falta de condições para assumir posição protagonista. Ou mesmo, quem sabe (?), as duas coisas juntas.
Talvez o melhor seja mesmo a discrição. Antes de ser um problema para a esquerda, Bolsonaro é um problemaço para a direita. Quem pariu Mateus que o embale.
Mas não é da esquerda que quero falar. Quero falar da direita.
Retomando o fio.
João Doria tornou-se o porta-voz do antibolsonarismo, a corrente política que mais cresce no Brasil atualmente.
Qualquer brasileiro minimamente atento ao noticiário político acompanhou a jornada de João Doria pela vacinação contra a Covid-19. Tendo sob seu controle o Estado mais rico da federação, uma das principais instituições científicas do país e o apoio da grande imprensa, Doria se lançou numa guerra total contra Jair Bolsonaro.
Não existia a possibilidade de meia vitória e meia derrota na “batalha da vacina”. Não podemos negar que Doria foi ousado, teve coragem política e venceu. Era jogo de tudo ou nada.
17 de janeiro de 2021. Certamente, esse foi o pior dia de Jair Bolsonaro em seus 30 anos de vida pública. O presidente viu seu inimigo colher os louros da primeira vacina aplicada em meio a uma das mais trágicas crises sanitárias da História. Bem assessorado por sua equipe jurídica, Doria vacinou a primeira pessoa logo depois que Anvisa aprovou o uso emergencial da CoronaVac, dando um olé no programa de imunização do Ministério da Saúde.
A vacinada foi uma enfermeira negra. Doria está piscando para a esquerda, flertando com a agenda da diversidade. Será suficiente?
Diante do revés, Bolsonaro tinha duas opções: insistir no negacionismo, boicotando a imunização, ou tentar se apropriar da campanha de vacinação. Depois do que aconteceu em Manaus, o negacionismo se tornou insustentável. Chega uma hora que a realidade grita e se impõe. Os 50% que há poucas semanas diziam que não se vacinariam, estão reduzidos a 21%, segundo pesquisa feita pelo Datafolha. Tem até negacionista convicto furando a fila da vacina. A histeria ideológica tem limites.
O governo, então, reorientou completamente o discurso e está tentando se apropriar da imunização, com o lema “Brasil imunizado: somos uma só nação”. Em 22 de janeiro, ministros de Estado foram ao aeroporto internacional de Guarulhos receber o lote de dois milhões de imunizantes enviados pelo governo da Índia. No momento em que escrevo este texto, Bolsonaro e Doria estão disputando a paternidade da liberação dos insumos farmacêuticos, até então retidos pelo governo chinês e que, ao que tudo indica, serão enviados ao Brasil nos próximos dias.
Bolsonaro diz que se trata de uma vitória diplomática do governo federal. Doria diz que foi o governo de São Paulo quem conseguiu contornar o desconforto diplomático gerado por Bolsonaro e sua turma.
É pouco dizer que o que está em jogo são as eleições presidenciais de 2022. Dá pra ser mais específico. Doria e Bolsonaro estão disputando na unha o controle da direita brasileira.
Tem mais gente de olho nesse latifúndio.
Luciano Huck já tem data para se desligar da Rede Globo, o que sugere que, dessa vez, sua candidatura é pra valer. Não podemos esquecer também de João Amoêdo, com o seu Novo, que teve desempenho nada irrelevante nas eleições de 2018. Ainda tem Sérgio Moro, que pode até estar enfraquecido, escanteado, mas não tá morto. Na política, gente viva não morre nunca.
Bolsonaro e Doria partindo na frente, seguidos por Luciano Huck, João Amoedo e Sérgio Moro. É o turfe da direita!
Se do lado de cá temos nossos problemas, com fragmentação, desunião e conflitos fratricidas, do lado de lá, a situação é ainda pior. Eu diria que é muito pior.
Ciro Gomes e o PT trocaram suas farpas. Nada comparado ao que está acontecendo entre Bolsonaro e o PSDB.
Fato mesmo é que a política brasileira se tornou um Afeganistão, retalhada por diversos grupos, cada qual incapaz de acumular poder suficiente para estabilizar o cenário. Somos uma sociedade estruturalmente colapsada, que não consegue estabelecer consensos, ou até mesmo acordos mínimos. É a mais grave crise de nossa história.