“Não existe essa coisa de sociedade. Existem indivíduos...” disse a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Esse pensamento liberal contribuiu para que em muitos países a pandemia levasse a sociedade à beira do caos.
Esse é o mesmo princípio que leva um indivíduo a não tomar a vacina, outro a furar a fila dos que estão na linha de frente para serem vacinados, e um outro a infringir as recomendações sanitárias de isolamento social. A liberdade individual acima de tudo, ela vem à frente de qualquer coisa.
“É o indivíduo que define sua própria ação e a partir desta ação ele construirá o mundo que o circunda", explica o professor Antonio Carlos Peixoto, sobre a filosofia liberal. O liberalismo foi o ápice de um individualismo que vinha dialogando com o holismo ao longo da história ocidental.
A Revolução Americana e a Francesa fortaleceram esse individualismo que desencadeou inúmeras frustações. Como descreve Louis Dumont, “se a Revolução marcara o triunfo do individualismo, ela parecia, pelo contrário, em retrospecto, não passar de um fracasso".[1]
Uma decepção crônica que criou um mundo do “cada um por si", no qual as promessas de igualdade passaram ao largo. No fim, explica o antropólogo francês, “o socialismo, forma nova e original, redescobre a preocupação do todo social e conserva um legado da Revolução. Ele combina aspectos individualistas e aspectos holistas".[2]
Não é por acaso que o país com maior infectados são os EUA. O pensamento liberal e individualista é mais intenso neste país. Embora o berço do liberalismo tenha sido a Europa, os EUA foram uma nação fundada sob esta bandeira. A nação norte-americana teve como berço as promessas liberais.
Esse aspecto ressoa diretamente na busca pela felicidade. Antes, a utopia da felicidade estava relacionada ao distanciar-se do mundo, livrar-se das coisas materiais, era um lugar similar ao Jardim do Éden. Com o liberalismo, especialmente nos EUA, felicidade passou a ser possuir. De acordo com o historiador Georges Minois, “na idade de ouro arcaica, éramos felizes porque não possuíamos nada, já na idade de ouro americana, somos felizes porque somos miliardários e os outros, não. A felicidade era antigamente a igualdade, agora é a liberdade, quer dizer, a desigualdade".[3]
Nesta angústia e luta para se ter, ou seja, para alcançar a felicidade prometida, não se toma vacina porque ela pode prejudicar a saúde, fura-se a fila da vacina para ser saudável e se viola as recomendações sanitárias de isolamento social devido à necessidade de ter uma saúde mental positiva. São o corpo e a mente do indivíduo as armas para se chegar a felicidade, não a estrutura social. “Não é a felicidade garantida para todos, é a felicidade possível para todos, em tese".[4]
O presidente Bolsonaro representa este pensamento. Seus filhos, inclusive, já posaram trajando roupas com o rosto de Thatcher em vídeos para as suas redes sociais. Abandona-se a sociedade, os interesses coletivos, em prol dos interesses individuais, da busca pela felicidade individual, do enriquecimento individual, etc.
Esse pensamento liberal individualista é o gestor da sociedade atual. Mas não é motivo de orgulho. “Tendemos a nos orgulhar do que talvez devesse nos envergonhar: de viver numa época ‘pós-ideológica’, ou ‘pós-utópica', de não nos preocuparmos com uma visão coerente de boa sociedade e de ter trocado a preocupação como bem público pela liberdade de buscar satisfação pessoal", lamenta Zygmunt Bauman.[5]
Muitos se vangloriam em defesa do liberalismo, argumentando que o socialismo não deu certo, mas é a visão que venceu, do individualismo acima da sociedade, que está nos levando à beira do colapso e a condições apocalípticas que antes ilustravam as páginas da ficção científica.
Devido a essa configuração trágica promovida pelo liberalismo, é que se torna ainda mais importante a luta pelo socialismo. Para isso é preciso pensar para além de governantes, para além de Trump e Bolsonaro, mas na estrutura como um todo que fomenta o capital.
[1] DUMONT, L. O individualismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1985, p. 115.
[2] Id., p. 120.
[3] MINOIS, G. A idade de ouro. São Paulo: Unesp, 2011, p. 326.
[4] Ibidem.
[5] BAUMAN, Z. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 16.