O presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, tem a intenção de mudar o nome da fundação governamental que preside para André Rebouças. Conhecido pelas suas falas como que o movimento negro brasileiro é “escória” e um “antirracismo Nutella” e que a “escravidão foi benéfica para os africanos”, Camargo retoma o protagonismo nas polêmicas nas redes sociais com esta ideia, coerente com o seu pensamento de que Zumbi era um bandido e que é favor da revogação do dia da Consciência Negra.
Ao ver esta ideia de uma pessoa que foi considerada até pelo seu irmão, o músico Oswaldo de Camargo Filho, o Wadico, como um “capitão do mato” e “racista”, lembrei-me de um debate em que participei anos atrás na PUC-SP em que um ativista negro criticava o movimento negro pelo fato de se invisibilizar a figura de André Rebouças, considerado para ele um grande ícone do povo negro brasileiro.
Para quem não sabe, André Rebouças foi um grande engenheiro que viveu durante o império de D. Pedro II. Foi o responsável, junto com o seu irmão Antonio, também engenheiro, por obras monumentais, como a estrutura de fornecimento de água para o Rio de Janeiro e também a estrada de ferro que liga Curitiba ao litoral, até hoje considerada uma obra prima da engenharia. Os dois irmãos estudaram engenharia na Escola Militar e trabalhavam para o império, inclusive na engenharia militar (André Rebouças, por exemplo, desenvolveu armamentos utilizados na Guerra do Paraguai). Quando do fim da monarquia e exílio da família real, André Rebouças foi para Portugal junto com eles e chegou a trabalhar em projetos em países africanos.
Esta é uma parte da história costumeiramente contada e utilizada para demonstrar a importância dos irmãos Rebouças, homenageados em vários nomes de logradouros em cidades brasileiras mas que poucos sabem que foram os primeiros engenheiros negros. Mas há uma outra parte importante: os dois, principalmente André, eram abolicionistas. Participaram ativamente das sociedades abolicionistas da época, financiavam cartas de alforria e também de manifestações em favor do fim da escravidão no Brasil.
Assim, tanto Rebouças como Zumbi lutavam pelo mesmo objetivo. A diferença são mais de 200 anos de história. No século XVII, quando houve Palmares, auge do período do escravismo pleno como define o pensador Clóvis Moura, evidente que não havia a mínima condição de existir uma intelectualidade negra com este peso e ainda mais vinculada a monarquia em um país que ainda era colônia de Portugal. A diferença não é entre homenagear Rebouças ou Zumbi, é de compreensão histórica: se não fosse as rebeliões da senzala – da qual Palmares é o maior símbolo – não existiria a conjuntura sócio-histórica do século XIX na qual houve o movimento abolicionista em um período em que já florescia uma nascente intelectualidade negra, como os irmãos Rebouças, Luiz Gama, Machado de Assis, entre outros. E, ainda assim, esta intelectualidade nascente sofreu as manifestações do racismo estrutural: Machado de Assis era ridicularizado por vários intelectuais do seu tempo, Luiz Gama praticamente foi expulso pelos brancos na Faculdade de Direito de S. Paulo e André Rebouças, em um episódio de um baile na corte imperial, tinha os pedidos de dança recusados pelas damas brancas.
A intenção de quem quer repisar neste embate entre Zumbi e Rebouças é demonstrar que é possível enfrentar o racismo pelo esforço pessoal. “Olha só, o que Rebouças fez no século XIX, se você estudar e se esforçar também pode chegar lá, para de ficar chorando e fazendo mimimi”, esta é a lógica deste pensamento. E ele ainda era de confiança do imperador!
Talvez Sérgio Camargo queira fazer analogia do seu caso, de ser pessoa de confiança do... Bolsonaro! Mas não tem nada a ver, primeiro porque Rebouças apoiou o movimento negro de então que lutava pela abolição e Camargo ridiculariza a luta contra o racismo; Rebouças era um gênio reconhecido internacionalmente, Camargo é... Bem, cada um pensa o que pode.
Defender a experiência de Palmares é lutar por uma sociedade em que novos Rebouças, Gamas. Machados não sejam exceções mas a normalidade.
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