Um homem da cidade de Catalão, em Goiás, está sendo acusado de fazer apologia ao trabalho infantil, pelo Ministério Público do Trabalho, e pode ser multado em até R$ 10 mil.
Dono de uma pequena loja de relógios, ele viu entrando nela um menino aparentando 7 ou 8 anos de idade, com uma caixa de engraxate nas costas. O menino tinha juntado, com seu trabalho, 30 reais, o preço de um relógio, e comprou um para dar de presente a um tio, irmão de sua mãe, no Dia dos Pais. O tio fazia o papel de pai dele desde que seu pai biológico se mandou, quando ele era bebê. O relojoeiro recebeu o dinheiro e devolveu, deu de presente ao menino, com recomendação de que ele continuasse assim, trabalhando etc. etc. Tudo isso foi filmado pelo genro do relojoeiro e colocado nas redes sociais (isso sim eu acho estranho).
Essa história me remeteu à minha primeira contribuição ao blog da Boitempo, em abril de 2011. Reproduzo aqui.
Florestan, Lula e o trabalho infantil
Publicado em 12/04/2011
Nada melhor do que inaugurar minha participação no blogue de uma editora de esquerda, que publica livros de sociologia, do que “falar” sobre Florestan Fernandes.
Mas não é sobre algum texto dele ou sua genialidade e coerência como sociólogo.
É que lendo sobre ele, pensei: “Será que Florestan teria sido o homem e o sociólogo que foi, se na sua infância já existisse o Estatuto da Criança e do Adolescente?”.
Ah, se um promotor de hoje pega uma mãe que deixa o filho começar a trabalhar aos seis anos e abandona a escola aos oito!
Não pensem que sou contra esse Estatuto, que seja a favor da exploração do trabalho infantil. Ao contrário, gostaria que ele fosse aplicado radicalmente contra os adultos que os exploram, seja em carvoarias e trabalhos degradantes ou nas ruas de São Paulo, colocando-os para pedir dinheiro ou vender qualquer coisa nos semáforos e nos bares, neste caso até tarde da noite.
E gostaria que funcionasse menos no caso de moleques metidos a malandros que ameaçam de denunciar com base no Estatuto os pais que querem que mudem de comportamento.
Voltando ao Florestan, ele afirmou em 1977: “Iniciei minha aprendizagem aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto”. E mais: “Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extraescolar que recebi das duras lições de vida”.
Nascido em 1920 (morreu em 1995), em São Paulo, filho natural de uma empregada doméstica, aos seis anos, fazia biscates e foi engraxate. Parou mesmo de estudar aos oito anos, para aumentar a receita da casa, pois sua mãe, então trabalhando como lavadeira e morando em cortiços e pensões, ganhava muito pouco. Ele só voltou ao ensino regular aos dezessete, para fazer o curso de madureza. Sentiu na pele as injustiças sociais.
Lia muito e, trabalhando como garçom, fez vestibular e entrou no curso de sociologia.
Imaginemos que, em vez de trabalhar, fosse a uma escola pública e ficasse o resto do dia à toa, num ambiente problemático, sem lazer e sem atividades culturais. Qual seria o seu futuro? Impossível adivinhar. Poderia até ter se tornado a pessoa admirável que foi, mas parece mais provável que não.
Lembrei-me também do ex-presidente Lula, que contava sempre da vida heroica de sua mãe, com um monte de filhos. Ele mesmo, criança, vendia amendoim para ajudar a sustentar a família. E chegou a afirmar que ele, irmãos e irmãs cresceram dignamente, ninguém virou marginal, graças à decência e capacidade da mãe para fazer os filhos trabalhar desde cedo.
Então, é preciso saber discriminar o que é exploração da criança e o que não é, entender as necessidades reais das crianças e suas famílias, o que nem sempre os encarregados de fazer cumprir as leis sabem.
Mais uma lembrança: Ricardo Kotscho conta, em um dos seus bons livros, que quando começou a trabalhar como repórter, foi encarregado de apurar uma denúncia de que um homem que tinha uma olaria na periferia de São Paulo punha no trabalho dois filhos ainda crianças.
Ele foi lá, era verdade. Mas o homem mostrou a ele que não tinha como manter a olaria funcionando sem ajuda dos filhos, pois não tinha renda para contratar um ajudante. Provou, mostrando o boletim escolar, que os meninos frequentavam a escola regularmente e tinham tempo para estudar. Tinham boas notas.
De volta ao jornal, Kotscho procurou o editor, e explicou que se a matéria fosse publicada podia ir algum fiscal do trabalho, fechar a olaria do sujeito e acabar com seu meio de vida. O editor disse que isso não era problema dele (Kotscho), nem do jornal. A obrigação dele era publicar a matéria. Publicou. Algumas semanas depois, voltou à olaria. Estava fechada. Os vizinhos disseram que uns fiscais foram lá e fecharam. Sem condições de sobreviver ali, a família se mudou para uma favela de São Paulo. Os filhos não trabalhavam mais.
Será que foram mais felizes e se tornaram cidadãos melhores do que teriam sido trabalhando com o pai?