Mito mania

Em sua nova crônica, Lelê Teles explica como o "Mito" mente de forma calculada, com método. Bolsonaro ao negar a ciência e a história não apenas mente, omitindo a verdade, mas mente para destruir a verdade, colocando a mentira em seu lugar.

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“desconhecereis a mentira e a mentira vos escravizará”, mestre cafuna. filhos do carbono e do amoníaco, convido-os, nessa gélida manhã brasiliense, a uma despirocante reflexão. depois de uma noite enluarada, tomando vinho filtrado por uma máscara de feltro, na agradável companhia de minha lívida amiga da pele cheirosa, saltou-me uma ideia da cabeça, numa pirueta amalucada e circense, qual um acrobata em desequilíbrio ou um ébrio e vexoso funâmbulo. tento, agora, botar essa ideia de pé; e para isso conto com vossa estimosa atenção. para tanto, porém, é mister que comecemos pelo início. tome nota: jamais confunda mito maníaco com mitomaníaco. à guisa de um experimento clínico e no afã de diferenciar essas duas categorias de mentirosos, descreverei esses dois tipos humanos e, ainda, mostrarei alguns estudos de caso para melhor compreensão deste fenômeno psicossocial que tanto mal faz à nossa boa gente. mito maníaco é todo espécime humano/vacum, mocho ou chifrudo, que se torna hiper hipnotizado ao ouvir o aberrante som do berrante presidencial como se estivera a escutar um profeta a soprar o seu chofar de corno de carneiro. nunca a definição de “comportamento de manada”, teoria de gustave le bon, se mostrou tão adequada. sim, é de gado que estamos a falar, mas de um gado bípede, um certo bumba-meu-boi urbano. ocorre que esse estranho rebanho corre atrás de um sujeito mentiroso e o chama de mito. a questão é que todas as mentiras contadas por esse profeta de araque são aceitas como a mais pura verdade, porque, este, esforça-se para fazer da verdade uma grande mentira. a terra é plana, o triângulo é quadrado, vacina mata, nazismo é de esquerda... negar a ciência e a história não é apenas mentir, omitindo a verdade, é mentir para destruir a verdade, colocando a mentira em seu lugar. baudrillard chamava esse negacionismo de “o grande simulacro”. mas... por que diabos alguém acredita que uma mentira deslavada possa ser veraz?, inquieta-se o leitor atormentado. a razão é simples, meu bom rapaz, esse mentiroso, berrante em punho, carrega consigo uma forte simbologia; o poder do mito. você só conseguirá compreender a força simbólica que tem um mito na construção de narrativas quando ler a obra seminal de joseph campbell, “o heroi de mil faces”. mas é bom que você saiba, o mito, em si, já é uma grande mentira. na definição de fernando pessoa, “o mito é o nada que é tudo”. e olha que de mentira pessoa entende, ele é criador de heterônimos (a mentira biográfica), forjou um cristo português sebastiânico (mentira metafísica) e disse que é um fingidor o poeta, um mentiroso por definição. porém, a mentira do poeta difere da mentira desse falso profeta. porque, esta, tem método, é calculada e serve a uma ideologia. é isso que move o mentiroso do berrante, mentir é um projeto de poder. como um mágico, ele falseia a realidade tornando a mentira uma substituta da verdade. sim, há mentiras e mentiras. um significante pode ter variados significados. por isso é tão importante estar atento à natureza das coisas. há a mentira cênica e a mentira cínica, bem como a mentira clínica e patológica, a mentira deslavada e ilógica, a mentirinha, a meia verdade, a mentira calculada, a descompromissada e aquela que se comete para se tirar proveito, auferir lucro, obter vantagens. mas não se assuste, leitor curioso, com seus próprios pequenos e exíguos pecados, mentir é natural e, em alguns casos leves e moderados, é até saudável. o que seria do poker sem o blefe, que graça teria todos os jogos de carta sem os ardilosos lances de olhos ou o cutucar de pés sob mesas, o que seriam dos cassinos sem a malandragem dos croupies? teríamos casamentos se os noivos não estivessem dispostos a enganar o padre no ato da cerimônia, concordando com tudo aquilo que se tem que concordar? o que seriam das anedotas de mesa de bar sem o bêbado metido a rico ou o falso mulherengo com disfunção erétil? percebe que há mentiras e mentiras? quando deus trovejou sua voz tonitruante das alturas onde vive e questionou o seu neto, caim, sobre o paradeiro do irmão, o fratricida respondeu ao avô com uma pergunta insolente: “acaso sou vigia do meu irmão para saber do seu paradeiro?” por agora, deixemos de lado o fato de que essa pergunta do senhor do universo contradiz sua propalada onisciência; aproveitemos o exemplo que ele nos brinda com essa gafe. ora, caim acabara de matar o irmão com violentos golpes de queixada de burro, portanto ele sabia onde estava abel e sabia perfeitamente que o irmão de lá não sairia. de facto, caim mentiu! porém, essa mentira não tenta se passar por uma verdade, ela apenas omite a verdade. e outra, caim mentiu para não ser punido, agindo em legítima defesa; lembremos que que um réu está desobrigado a fabricar ou fornecer provas contra si mesmo. “a verdade vos libertará”, diz o salmo. balela, a cadeia tá cheia de réus confessos e os tribunais não param de mandar pra casa artífices mentirosos. “o homem mente desde que começou a falar”, falso, mudos também mentem. “nada é mais humano que a mentira”, bobagem, os animais e as plantas mentem descaradamente. o que é o camaleão senão um tremendo mentiroso em sua ardilosa camuflagem? e tem até a nanomentira, a biomentirinha. um exemplo? esse vírus virulento que simula sucessivas mutações para driblar e enganar anticorpos; o que é isso senão mentir? “a mentira tem perna curta”, sim, mas é nos ombros dessa anã que o cabra do berrante tem caminhado a passos largos; foi na cacunda dela que uma facada lhe rasgou o bucho, sem deixar buraco nem sinal de sangue. é essa mentira, simulacro da verdade, que está a nos arrastar para o abismo, e é ela que funciona como alfafa para os midiotas, é essa ração diária de mentira que estampa manchetes em fake news, ela é que é perniciosa. sua razão, única, é auferir lucro, ela almeja resultados, ela procura lobotomizar mentes para implantar uma ideologia. é isso, chegamos ao final da nossa reflexão de hoje. percebe como diferir o mito maníaco do mitomaníaco? o mitômano, esse enfermo que nega a verdade, mentiroso patológico, compulsivo e irrefreável, mente até para si mesmo. no entanto, seu doentio hábito de mentir é quase ingênuo; ele não mente com a intenção de obter vantagens, não é isso que motiva sua pseudofilia; ele mente até para se prejudicar. é um adicto! nunca confunda um doente com um sociopata mau caráter. já o mito mente de forma calculada, planejada e ardilosa; ele tem um método. todos sabemos que há um odioso gabinete operando mentiras, fabricando e disparando inverdades para contaminar a mente dos mito maníacos, esses midiotas desconhecedores da verdade. há duas categorias de mito maníacos: os que seguem as mentiras do mito - e as tem como verdade -, e os que produzem as mentiras para o mito, distorcendo a verdade. os primeiros, diz o venerando mestre cafuna, ainda têm cura, nada que umas boas chineladas na bunda não resolva; porém, os segundos, só a cadeia, a tranca. lá, no xilindró, a terra pode até não ser plana, mas o sol nasce com uma bisonha forma geométrica. palavra da salvação.