“Aprender apanhando”: entre a fábrica e a família

Leia no artigo de Raphael Silva Fagundes e Michelle Madi Dias: O reacionarismo e o ódio contra os oprimidos só serão superados quando essa memória de se “aprender apanhando” for abandonada de uma vez por todas

Reprodução/Creative Commons
Escrito en OPINIÃO el

Por Raphael Silva Fagundes e Michelle Madi Dias[1]

A memória

A memória é bem diferente da história. “A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos". “A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais", nos explica Pierre Nora.[2] A memória é afetiva, a história reivindica uma metodologia científica. Mas, a memória coletiva, por assim dizer, pode ser usada politicamente de forma semelhante à manipulação histórica, já que, como coloca Jacques Le Goff, ela “foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder".

A neurociência, não nos deixam mentir Daniel Siegel& Tina Payne Bryson, explica que “a memória não é uma reprodução exata dos eventos do passado. Sempre que recuperamos uma memória, nós a alteramos.”[3] .

Mais especificamente sobre a memória da ditadura militar, Daniel Araao Reis mostra como ela foi manipulada em vários sentidos: “O projeto reformista revolucionário evaporou-se, transformado em um fantasma. As esquerdas foram vitimizadas. Os amplos movimentos sociais de direita, praticamente apagados. Os militares, estigmatizados gorilas, culpados únicos pela ignomínia do arbítrio [...] a esquerda revolucionária transformou-se numa inventada resistência democrática de armas nas mãos”.[4]

Portanto, vemos, em muitas representações, a omissão da sociedade civil que apoiou o golpe e dos empresários que o bancou. Também vemos a omissão de uma esquerda que queria sim implantar o comunismo no país (embora não tenha sido por conta dela que se aplicou o golpe, como veremos). A memória é manipulada por todos os lados.

A violência contra o operário

Mas a questão que queremos destacar nesta oportunidade é a solução adotada pelo capital para excluir o trabalhador do debate democrático sobre capital e trabalho.

O populismo de Vargas (de forma ainda que tutelada) trouxe os trabalhadores para essa discussão. Após a conquista dos direitos, os trabalhadores foram para as ruas. No período que preenche os anos de 1945 a 1964, diversos membros do PCB chegaram ao parlamento e se uniram ao PTB na defesa de uma economia moral dos pobres focada nos direitos trabalhistas.

Incapazes de conter o avanço dessa economia moral por meios democráticos, os empresários e o capital estrangeiro usaram os militares como cães de guarda para promover, por meio da violência, seu projeto de poder: excluir o trabalhador do debate democrático sobre capital e trabalho.

Relativizamos violências ao desumanizar o outro, deixando de enxergá-los, como Marshall Rosenberg diz, a partir de necessidades humanas[5]. Esse processo de objetificação que torna tão natural dominar os oprimidos impulsiona os opressores aos violentarem.

O trabalhador tornou-se um objeto nas mãos dos patrões, coisas das quais seria possível extrair mais-valia. Sue Gerhardt fala sobre como, entre o século XVIII e XIX, a expansão do capitalismo calou as emoções humanas pois “o ímpeto de maximizar a produção incentivou os donos de fábrica a tratar seus trabalhadores como extensões de suas máquinas, e não como pessoas com sentimentos.[6]

O operário e a criança violentada

Essa ideia tem uma relação muito estreita com a violência dita pedagógica. Aquela violência aplicada pelos pais para disciplinar os filhos. Muitos ainda carregam na memória essa espúria noção. Frases como, “no meu tempo as crianças eram mais educadas porque apanhavam", podem ser ouvidas com frequência. E existem aqueles que ultrapassam o saudosismo e colocam práticas punitivas em ação sob a justificativa de educar.

Incapazes de conviver harmoniosamente com as atitudes características dessa fase da vida, e de intervir por meio do diálogo, os pais se acham na legitimidade de exercer a violência. Exatamente como o fizera a burguesia contra os trabalhadores, ao longo da história e, no Brasil,no golpe de 1964.

“O patrão é visto como pai que proporciona trabalho aos seus filhos, protege-os, associa-os à história de sua família (festas de casamento ou outros acontecimentos familiares)”, explica a historiadora Michelle Perrot que analisa a história da classe trabalhadora no século XIX.[7] É o que se convencionou chamar de paternalismo. No Brasil, Vargas se tornou uma figura de referência para os trabalhadores ficando conhecido, em seu próprio tempo, como o “Pai dos pobres".

Perrot relata um caso que chega a confundir a revolta epidiana com a que se direcionavaao patrão, causada, sobretudo, pela violência. “A ideia de que se aprende melhor apanhando, ideia que a escola leiga combate, persiste no meio operário. O pai não se dá conta de que o filho cresceu. Jean Allemane não suportou que, aos dezesseis anos, seu pai, um tipógrafo, o esbofeteasse; data daí sua revolta contra a autoridade e sua ‘conversão’ socialista".[8]

Patrões batiam nos jovens trabalhadores “com uma vara de junco" comprada “expressamente para essa função”.[9] Perrot também retrata casos de assassinato de aprendizes contra seus mestres por não suportarem os maus tratos.

A violência contra a criança em tempos de pandemia

A violência contra a criança vem aumentando devido aos desdobramentos da pandemia do Covid-19. “Em meio à pandemia, que trouxe a necessidade de isolamento social, e, no caso do Pará, um dos estados que adotou o 'lockdown', o risco para crianças ainda se torna maior, pois estão convivendo mais diretamente com o agressor”.[10] 

Publicado em maio, “um relatório da organização não governamental (ONG) World Vision estima que até 85 milhões de crianças e adolescentes, entre 2 e 17 anos, poderão se somar às vítimas de violência física, emocional e sexual nos próximos três meses em todo o planeta. O número representa um aumento que pode variar de 20% a 32% da média anual das estatísticas oficiais”.

“Infelizmente, a casa não é um lugar seguro para todos, pois muitos membros da família precisam compartilhar esse espaço com a pessoa que os abusa”, afirma Andrew Morley, presidente do conselho da World Vision International.[11] Essa constatação é justamente o oposto do que ocorreu no processo de modernização do Ocidente quando a família passou a ser reconhecida como“o único meio através do qual a criança poderia se tornar emocionalmente estável”.[12]

Mas o que aconteceu de fato, principalmente entre as classes populares, foi que a violência contra a criança, no seio da família, acabou se tornando parte do mesmo sistema de poder que compôs os primeiros anos da história do sistema capitalista. O operário, visto como um filho, apanhava como uma criança no seio de sua família. A ideia de pai, atribuída ao genitor e ao patrão, legitimava o exercício da violência contra a criança/operário.

O desconhecimento acerca do desenvolvimento infanto-juvenil e seus comportamentos esperados coloca crianças e adolescentes vulneráveis à violência parental. Isso ocorre não somente pela reprodução de ciclos violentos da família de origem dos educadores/pais, mas também pela ideia errônea de que a educação é um processo unilateral onde somente o adulto protagoniza e os filhos servem de receptáculos apenas, o que não é verdade. De acordo com Renata Ferrarez Fernandes Lopes &Ederaldo José Lopes “em cada fase da vida educar implica desafios para quem educa e para quem é educado, pois afinal todos nós estamos em alguma fase de nosso desenvolvimento”.[13]

Diferente do adulto que pode ter estruturas cerebrais alteradas, a criança humana nasce com muitas estruturas ainda não formadas. Segundo Sue Gerhardt “bebês humanos nascem com um cérebro que mede apenas um quarto de seu tamanho adulto final – um cérebro muito mais incompleto que o de outros mamíferos – os cuidados na primeira infância (e além) desempenham um papel muito maior na sua formação. Muitos sistemas regulatórios ainda estão em desenvolvimento, e novas adaptações à realidade estão sendo feitas.[14]” 

Um desenvolvimento humano sem violência

Cientes de que nossos vínculos familiares influenciam nossas relações interpessoais futuras, observam-se muitas coisas negativas que a prática punitiva, seja física, verbal ou emocional, ensina a criança sobre as relações sociais. 

Segundo Ligia Moreiras Sena & Andréia C.K.Mortensen, “frequentemente, famílias que usam palmada na criação de filhos não se reconhecem como violentas, acreditam que essa é uma forma de correção, de educação e, portanto uma demonstração de amor. Porém, essa conexão entre agressão física e amor é perversa, inaceitável e perigosa[15]”.

Ainda de acordo com as autoras, esse tipo de vivência na infância conduz crianças e adolescentes à um risco maior de estarem em relacionamentos abusivos no futuro, ou se tornarem abusadores. Em seu livro; “Educar sem violência: criando filhos sem palmadas”, relatam sobre pesquisas de Durrant&Ensom (2012) que “para além das consequências imediatas, está associada a problemas de comportamento na vida adulta, incluindo depressão, tristeza, ansiedade, sentimentos de melancolia, abuso de drogas, entre outros sérios problemas psicológicos”[16].

Por isso que “bater em alguém, adulto ou criança, nada mais é que um sinal de inaptidão para controlar os próprios instintos agressivos. É um atestado de ineficiência, de incapacidade.[17]”.

Um dos pilares do bom desenvolvimento infantil é o amor incondicional – que garante à criança uma base de apego segura o suficiente para se formar e explorar o mundo.  Esse tipo de amor só é possível se separarmos a criança em sua essência, de seu comportamento. Segundo Rosenberg, “amor incondicional exige que, não importa qual seja o comportamento das pessoas, elas tenham a confiança de que receberão  alguma medida de compreensão de nossa parte”[18].

A disciplina deve servir à orientar, ensinar e não como prática de violência. Agressões infantis não educam, principalmente em crianças pequenas que simplesmente não possuem maturidade cognitiva para atender aos desejos parentais.

O reacionarismo e o ódio contra os oprimidos só serão superados quando essa memória de se “aprender apanhando” for abandonada de uma vez por todas. O amor é indispensável ao desenvolvimento humano. A mudança do comportamento social exige a mudança no comportamento privado, familiar. A libertação de cada oprimido é a libertação de todos. A libertação da criança é também a libertação do proletariado. Uma criança que cresce em um ambiente sem violência pode se tornar um trabalhador libertário, que resiste à ameaça do próprio capital.


[1] Michelle Madi Dias é psicóloga clínica e social, atuante no SUAS, especialista em terapia de família e pós-graduanda em terapia cognitivo comportamental na infância e adolescência.

[2] NORA,  Pierre.  Entre  memória  e  história:  a  problemática  dos  lugares.  In:  Projeto  História  10,  São  Paulo,  n  10, dezembro,  1993.  p  9.

[3] SIEGEL, Daniel e BRYSON, Tina Payne. O cérebro da criança: 12 estratégias revolucionárias para nutrir a mente em desenvolvimento do seu filho e ajudar sua família a prosperar. Trad.: Cássia Zanon. São Paulo: nVersos, 2015, p 109-110.

[4] REIS, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: ______, REDENTI, M. e MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (orgs.) O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004). Bauru: EDUSC, 2004. p. 50.

[5] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. Trad.: Mário Vilela. São Paulo  Ágora, 2006, p.40.

[6] GERHARDT, Sue. Porque o amor é importante: como o afeto molda o cérebro do bebê. Trad. Maiza Ritomy. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2017, p.06.

[7] PERROT, M. Os excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 83

[8] PERROT, M. A juventude operária. Da oficina à fábrica. LEVI, G. e SCHMITT, J-C. História dos jovens: a época contemporânea. São Paulo: Cia das Letras, 1996, p. 102.

[9] Id., p. 104.

[10] https://www.google.com/amp/s/g1.globo.com/google/amp/pa/para/noticia/2020/05/15/isolamentosocial-na-pandemia-potencializa-aumento-de-casos-de-abuso-contra-criancas-e-adolescentes.ghtml

[11] https://www.google.com/amp/s/www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2020/05/20/inte rna_mundo,856939/amp.html

[12] SENNET, Richard. O declínio do homem público. Trad: Lygia Araujo Watanabe. Rio de Janeiro: Record, 2014. p. 265.

[13] LOPES, Renata Ferrarez Fernandes e LOPES, Ederaldo José. Conhecendo-se para educar: Orientação Cognitivo-Comportamental para pais. Novo Hamburgo: Sinopsys, 2015, p.122.

[14] GERHARDT, Sue. Op. Cit., p.26

[15] SENA, Lígia Moreiras e MORTENSEN, Andréia C.K. Educar sem violência:  criando filhos sem palmadas. Campinas, SP: Papirus 7Mares, 2014, p.73.

[16] Id; p. 19.

[17] Id; p.81.

[18] ROSENBERG,  Marshall B. Criar filhos compassivamente: maternagem e paternagem na perspectiva da comunicação não-violenta. Trad.: Tônia Van Ações. São Paulo:  Palas Athenas, 2019, p.35.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum