Os vídeos que viralizaram nas redes mostrando “carteiradas” diante de fiscais municipais que vigiam a utilização das máscaras nessa pandemia (um engenheiro civil no Rio e um desembargador em Santos/SP) escandalizaram jornalistas e analistas da mídia corporativa. Entre o moralismo e a defesa de teses antropológicas sobre “o jeitinho brasileiro”, na verdade escondem a má-consciência: foram eles que empoderaram o “Brasil Profundo”, estimulando classismo, ódio e intolerância para engrossar as massas de verde-amarelo que potencializaram a guerra semiótica que desfechou o impeachment em 2016 e o atual governo de extrema-direita. Além disso, esses vídeos virais revelam o Efeito Heisenberg midiático: na verdade a mídia passa a maior parte do tempo mostrando efeitos que a sua própria cobertura gerou na sociedade.
Recentemente dois vídeos viralizaram nas redes sociais e nos telejornais da mídia corporativa: a mulher que se ofendeu durante uma fiscalização de rua no Rio, quando o marido engenheiro civil foi tratado por “cidadão”; e a humilhação de um guarda municipal em Santos por um desembargador autuado por estar andando sem máscara na faixa de areia da orla da cidade.
Feridos nos seus brios dentro dos seus repentinos papéis civilizatórios na atual crise da pandemia do Covid-19 (agora vivem falando em “Ciência”, “empatia” e “cidadania”), jornalistas, colunistas e analistas ocupam muitos centímetros por coluna e longos minutos televisivos para demonstrar toda a escandalização e repúdio.
Suas críticas variam entre o puro moralismo (“falta de empatia”, “egoísmo”, “intolerância” etc.) e o esforço em tentar tecer teses rápidas de antropologia, citando Roberto DaMatta e Lilia Shwarcz – o fenômeno da “carteirada” ou do “você sabe com quem está falando?” como um hábito enraizado no “jeitinho brasileiro”.
E chegam a um incrível esforço histórico em relembrar os resquícios do “sistema colonial de capitanias hereditárias e do regime escravocrata” – como se também o próprio monopólio midiático não fosse uma herança desse passado não resolvido na Nação.
Uauuu!!!! A grande mídia está se tornando progressista? Está fazendo mea culpa? Estamos bem longe disso. Na verdade, a mídia corporativa ainda está no modo “controle de danos”, desde o impeachment de 2016 - depois de anos funcionando como um verdadeiro partido de oposição, servindo de câmara de eco para tudo que era de mais regressivo no “Brasil profundo” dentro da estratégia de engrossar a oposição vestindo verde-amarela que ocuparia ruas e avenidas.
O desembargador que chama o guarda municipal de “analfabeto” e amassa e joga na areia a multa; e a mulher que disse “cidadão não, engenheiro civil, melhor do que você!” tem menos a ver com “carteirada” de um indomável natureza macunaímica do brasileiro e muito mais com um efeito midiático bem conhecido aqui no blog Cinegnose: o Efeito Heisenberg.
Efeito Heisenberg e o Brasil Profundo
Só para relembrar, o conceito foi criado pelo jornalista e crítico cultural norte-americano Neal Gabler no seu livro Vida, O Filme – Como o entretenimento conquistou a realidade.
O termo “efeito Heisenberg” é uma referência ao princípio da incerteza da mecânica quântica de Werner Heisenberg (1901-1976): quando se tenta estudar uma partícula atômica, a medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode observar uma coisa sem influenciá-la.
Para Gabler o resultado da onipresença das mídias teria sido transformar a sociedade em um gigantesco efeito Heisenberg. Na medida em que a mídia se torna onipresente cobrindo o que as pessoas fazem, cada vez mais a mídia cobre a si mesma. Na verdade, na maior parte do tempo, a mídia cobre os efeitos do impacto da cobertura das mídias sobre a vida das pessoas.
Para Gabler, se o principal efeito da onipresença midiática foi transformar quase tudo que era noticiado em entretenimento, o efeito secundário foi forçar quase tudo a se transformar em entretenimento para atrair a atenção da mídia – clique aqui.
Se Gabler vê esse efeito num contexto liberal dos EUA, imagine então no contexto brasileiro em que a mídia corporativa se transformou na principal força de oposição e pivô da guerra híbrida brasileira – principalmente no período que antecedeu ao impeachment de 2016.
O que acompanhamos nesses vídeos virais são a decorrência direta do empoderamento do chamado “Brasil profundo”, estratégia dentro da guerra semiótica que a grande mídia pôs em ação na conquista da opinião pública pelo apoio do golpe político.
De um lado, profissionais liberais de classe média ressentidos da própria precarização cuja insatisfação foi canalizada para as massas trajando verde-amarelo nas demonstrações domingueiras de golpismo: fazendo selfies ao lado de policiais militares e de “caveirões” israelenses da PM de São Paulo, clamando por “intervenção militar constitucional”. Tudo com a cuidadosa cobertura ao vivo pelas emissoras de TV – inclusive foçando a alteração dos horários dos principais jogos do campeonato brasileiro de futebol.
E do outro, um representante do poder Judiciário que ao longo dos últimos anos transformou-se no principal associado no consórcio que manipula a agenda política atual – o consórcio militar-judiciário-midiático.
O vazamento diário das investigações do Judiciário para a repercussões nos telejornais; premiações da TV Globo como o “Innovare” (que premia juízes, tribunais e promotorias) para “valorizar soluções para os desafios no sistema de Justiça”; ou a glamourização de juízes justiceiros como na minissérie do canal GNT Questão de Família (2017) , é o que está por trás motivando a orgulhosa indignação do desembargador que amassa a multa e joga fora na cara do guarda municipal.
Porém, o mais sintomático foi a desafiadora reação do desembargador que virou o inimigo número um da cruzada moral da mídia corporativa que prática um jornalismo imerso no álcool em gel: alegou que os vídeos apresentados estavam “fora de contexto”, editados deliberadamente para transforma-lo em vilão.
Ora, o desembargador parece conhecer o modus operandi de todo telejornalismo – o veneno volta-se contra o jornalismo corporativo, a criatura volta-se contra o criador. Principalmente depois de anos retirando informações de vazamentos da Operação Lava Jato de contexto para destruir reputações.
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